
A Biblioteca Mário de Andrade e a cultura de memória
Autora: Isadora Braga de Andrade Batista
Breve qualificação: Gestora cultural e Advogada. Pós graduada em Direito Administrativo (IDP). Bacharel em Direito pela UFPI. Pesquisadora sênior do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR). Membro da Rede Brasileira de pesquisadores de sítios de memória e consciência (REBRAPESC). Atualmente é coordenadora de contratações artísticas da Biblioteca Mário de Andrade.
A censura à livre expressão e à criação artística é um dos aspectos mais evidentes dos regimes totalitários.
No Brasil, durante a ditadura civil-militar (1964-1985), o controle estatal sobre o fazer livre artístico se intensificou por meio da publicação de decretos-leis e atos institucionais que impuseram censura prévia à espetáculos teatrais, músicas, programas de rádio e televisão, filmes e, também, ao mercado editorial. Com a publicação do Decreto-Lei nº 1.077, o Estado passou a proibir expressamente a circulação de livros considerados “contrários à moral e aos bons costumes”, alegando que tais publicações “insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade brasileira”.
Nesse contexto, as bibliotecas públicas, enquanto instituições de memória e de produção e difusão de pensamentos e bens culturais, foram impactadas em diferentes escalas pelas diretrizes repressivas que limitavam e delimitavam o acesso à informação.
Assim, este texto busca investigar como a Biblioteca Mário de Andrade, a segunda maior do país, lidou com esse contexto de censura e, sobretudo, como a instituição tem, nos últimos anos, revisitado sua memória institucional por meio de práticas que apontam para um resgate do patrimônio cultural censurado.
Em particular, analisa-se a publicação da revista 69, lançada em 2015, cujo título e conteúdo evocam frontalmente o obsceno, não apenas em sua dimensão sexual, mas como símbolo daquilo que foi silenciado, censurado e mantido fora da cena pública.
A CENSURA COMO POLÍTICA INSTITUCIONALIZADA
Nos primeiros anos do regime militar, entre 1964 e 1968, não havia um aparato burocrático sistematizado para a censura a livros, revistas e jornais no Brasil. Esse período foi marcado por “uma atuação confusa e multifacetada, pela ausência de critérios, mesclando batidas policiais, apreensões, confiscos e coerção física” (REINÃO, 2014, p. 75).
O cenário começa a se alterar com a Constituição de 1967, que, embora não instituísse formalmente a censura prévia a publicações, conferiu à União a competência de exercer a “censura de diversões públicas”, conforme disposto no artigo 8º, inciso VII, alínea d.
O recrudescimento do controle ao mercado editorial veio um ano após a promulgação da Constituição de 1967, com o Ato Institucional nº 5, que cassou direitos políticos e ampliou os poderes repressivos do regime, inclusive possibilitando o endurecimento dos mecanismos de censura. No caso específico do mercado editorial, a censura prévia foi regulamentada pelo Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que estabelecia:
Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes, quaisquer que sejam os meios de comunicação.
Art. 2º Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal, verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior (BRASIL, 1970).
Institucionalmente, essa atribuição foi exercida pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), vinculada ao Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, que passou a analisar previamente os conteúdos das obras para verificar a presença de material considerado atentatório à moral e aos bons costumes, emitindo pareceres técnicos a fim de confirmar ou não a existência do conteúdo proibitivo.
De acordo com levantamento realizado por Sandra Reinão (2014) no Arquivo Nacional, em Brasília, entre 1970 e 1988, aproximadamente 490 livros e 94 revistas foram submetidos à apreciação do órgão censor. Entre os livros vetados, cerca de 60 podem ser classificados como de conteúdo erótico ou pornográfico. A autora chama a atenção para o fato de muitos documentos que seriam relevantes para este levantamento podem ter sido eliminados ou extraviados e que, por isso, “não sabemos a que percentual do total originalmente existente essa documentação corresponde.”(REINÃO, 2014, P. 79)
EM NOME DA MORAL E DOS BONS COSTUMES: A CRIAÇÃO ARTÍSTICA NA ENCRUZILHADA
Dos livros de conteúdo eróticos ou pornográficos vetados pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) chamam a atenção duas autoras: Adelaide Carraro e Cassandra Rios. A primeira teve 18 livros vetados e, a segunda, 13. Textos teatrais com esse teor também foram vetados, como os do teatrólogo Plínio Marcos que abordava temas considerados obscenos como sexo, homossexualidade e miséria. Como bem nos lembra Reinão “não nos esqueçamos de que parte dos militares via a sexualidade podendo ser utilizada como ferramenta do “expansionismo comunista” (REINÃO, 2014, p.75).
O controle por meio da censura e da repressão provocou dois movimentos distintos: por um lado, gerou-se um “vazio cultural”, decorrente do constante estado de vigilância e da possibilidade de autocensura, levando muitos autores a interromperem suas produções artísticas.
Por outro lado, contudo, “apesar da forte repressão, uma combinação de diferentes elementos criou um ambiente no qual a criatividade ganhou fôlego para combater o moralismo militar” (SOUZA, 2016, p. 4).
Nesse contexto, ainda que não seja o foco central do presente texto, aqui cabe destacar a existência de diversas estratégias de organização da classe artística e intelectual frente às regulamentações e repressões impostas pela ditadura, expressas nas “diversas experiências desenvolvidas no intuito de criar uma estética capaz de instigar a sociedade a reagir”, isto tudo além dos “diversos cruzamentos entre ativismo artístico e ativismo político” (SOUZA, 2016., p.4).
A BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE E A CULTURA DE MEMÓRIA
Fundada em 1925, a Biblioteca Mário de Andrade é a segunda maior biblioteca pública do Brasil. Em janeiro de 1975, com a criação da Secretaria Municipal de Cultura, a Divisão de Bibliotecas, à qual a BMA estava vinculada, foi transformada em Departamento de Bibliotecas Públicas, passando a constituir uma unidade orçamentária da Prefeitura.
As pesquisas documentais no Arquivo Histórico da Instituição apontam, preliminarmente, que entre os anos de 1964 a 1985, a Biblioteca foi dirigida por nove diretores diferentes. Ademais, indicam uma anuência institucional às diretrizes governamentais e também judiciais. Isto porque, constam nos arquivos, ofícios encaminhados pela Justiça Federal quanto a livros censurados pelo judiciário.
Nesse contexto, destaca-se a trajetória editorial da instituição. Criado em 1943, o Boletim Bibliográfico reuniu ao longo de décadas colaborações de importantes intelectuais brasileiros, sendo publicado até 1988, no número 49.
A partir de 1992, a publicação passou a se chamar Revista da Biblioteca Mário de Andrade, título que mantém até os dias atuais.
Em 2015, a edição 69 da Revista, intitulada Obscena, apresentou dossiês, entrevistas e ensaios críticos dedicados a autores, obras e temáticas consideradas eróticas, obscenas ou marginalizadas.
Entre os textos, destacam-se reflexões sobre figuras controversas, como o Marquês de Sade, além de memórias de artistas que sofreram censura durante a ditadura, como Plínio Marcos.
Conforme o texto de apresentação da edição, a publicação assume caráter manifesto ao declarar que a Biblioteca adota novos posicionamentos institucionais, defendendo que “as bibliotecas públicas brasileiras não mantenham restrições de caráter moral, religioso, ou outro qualquer, sobre temas, assuntos ou objetos que integrem as suas coleções”.
Importante destacar, dentre os temas abordados na Revista, o texto de Leo Lama, sobre Plínio Matos, seu pai, intitulado “Meu pai morreu”. O texto revisita as memórias de Leo sobre o próprio pai, que em certa passagem diz “não podia fazer peça de puta porque a ditadura não gostava” e em outro momento diz “a censura não queria meu pai escrevendo em lugar nenhum”.
A opção editorial por trazer à tona os silenciamentos de outrora, reconhecendo o papel das instituições na exclusão de determinados saberes e narrativas, é “ um deslocamento do interesse apenas dos grandes acontecimentos e dos heróis da velha história – comumente contemplada pela História Oficial – para o lugar dos pequenos, dos vencidos, das “massas dormentes”(SOUZA, 2016, p. 4)
Nesse sentido, a atuação da Biblioteca Mário de Andrade insere-se no campo da cultura da memória, ao assumir criticamente sua trajetória e reposicionar-se como agente ativo na construção de novas narrativas.
O reconhecimento de sua própria memória institucional permite que a instituição reconfigure suas práticas curatoriais e editoriais no presente. Tal movimento reforça o entendimento de que os acervos, as publicações e os espaços simbólicos das bibliotecas públicas constituem patrimônio cultural em constante construção, refletindo disputas de memória, poder e pertencimento.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970. Estabelece normas sobre a publicação e comercialização de livros e periódicos. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 27 jan. 1970. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1077.htm.
SOUZA, Alice Costa. Cultura de memória no Brasil: arte sobre a ditadura militar. 2016. Disponível em: https://www.academia.edu/82607538.
LEITÃO, Bárbara Júlia Menezello. Bibliotecas públicas, bibliotecários e censura na Era Vargas e regime militar: uma reflexão. Rio de Janeiro: Intertexto; Interciência, 2011.
MELENDI, Maria. Cultura De Memória No Brasil: Arte Sobre a Ditadura Militar. 2016.
REIMÃO, Sandra. “Proíbo a publicação e circulação…”: censura a livros na ditadura militar. Estudos Avançados, São Paulo, v. 28, n. 80, p. 315–326, abr. 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142014000100008.
Secretaria Municipal de Cultura. Revista da Biblioteca Mário de Andrade. Obscena, n. 69, 2015.