Azeite da Costa do Dendê: o Patrimônio Cultural Imaterial Como Ferramenta para a Proteção do Território

Autora: Paloma Daniel Bastos

Breve qualificação: Advogada. Mestra em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação (PROFNIT), pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduada em Advocacia tributária. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora da Agência UNEB de Inovação. Pesquisadora sênior do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR).

O AZEITE DE DENDÊ COMO PATRIMÔNIO CULTURAL E IG

Este artigo busca explorar como o processo de patrimonialização pode ser uma ferramenta crucial para a proteção do território, a preservação da cultura baiana e o fortalecimento da produção de azeite de dendê, garantindo que essa tradição continue a fazer parte da identidade e da economia local.

O dendezeiro, da espécie Elaeis guineenses L., é um tipo de palmeira originária da costa da África. Através do seu fruto é possível se extrair como matéria-prima o azeite de dendê (Embrapa, 1980; Mesquita, 2002; Queiroz, 2014). Essa oleaginosa adentra às terras brasileiras durante o período colonial, através dos escravos (Embrapa, 1980; Mesquita, 2002; Queiroz, 2014). A sua produção se consolidou no território do estado da Bahia, mais especificamente no litoral, que, além do clima tropical, apresenta solo favorável (Queiroz, 2014).

O azeite de dendê consolidou-se como um elemento da cultura do povo baiano. Tal como afirma Santos (2024, p. 167), “[…] esse líquido oleaginoso acabou por convertendo-se na base e no fundamento da própria cultura baiana”. Apesar de sua importância para o território, a produção de azeite de dendê no estado da Bahia vem registrando baixas significativas desde o ano de 2012, com o agravamento a partir de 2020. Muito se sinaliza a ausência de políticas públicas com vistas ao fomento e incentivo ao plantio dessa espécie. A soma desses fatores culmina em um cenário no qual a atual produção não consegue responder às demandas do mercado local e externo (Santos, 2024). 

Com vistas à preservação dessa cultura e do seu saber-fazer, os produtores, em articulação com diversos setores da sociedade baiana, decidiram se valer de dois instrumentos de proteção previstos na lei: voltado ao território, o registro do Azeite da Costa do Dendê como indicação geográfica na modalidade denominação de origem, e, tendo como base o bem cultural, o reconhecimento do modo de fazer tradicional do azeite de dendê de pilão e roldão como patrimônio cultural imaterial do estado da Bahia.

Ao lançar mão desses instrumentos, o presente artigo tem como finalidade demonstrar como o processo de patrimonialização pode auxiliar na proteção do território e preservação desse produto.

DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL

A Constituição Federal de 1988 trata da proteção à cultura em seus artigos 215 a 216-A. É dever do Estado garantir que os cidadãos possam exercer os direitos culturais de forma plena, bem como deve oportunizar o acesso às fontes da cultura nacional, apoiando e incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais (caput, artigo 215) (Brasil, 1988).

Conforme o disposto no artigo 216, considera-se como patrimônio cultural brasileiro “ […] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira […]” (Brasil, 1988).

Na esfera federal, em 04 de agosto de 2000 foi publicado o Decreto nº 3.551, responsável por instituir o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro e criar o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. 

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 17 de outubro de 2003, aprovou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial.

O Brasil é signatário do acordo, havendo sido aprovado o texto através do Decreto Legislativo nº 22, de 01 de fevereiro de 2006, e promulgado pelo Decreto Presidencial nº 5.753, de 12 de abril de 2006 (Queiroz, 2020). De acordo com o artigo 2, item 1, patrimônio cultural imaterial são “[…] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas […] que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural […]”, que se “[…] transmite de geração em geração […]” e é “[…] constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade […]” (UNESCO, 2006).

Em âmbito estadual, a Bahia também legislou sobre o tema.

A Lei nº 8.895, de 16 de dezembro de 2003 instituiu as normas de proteção e estímulo à preservação do patrimônio cultural do Estado da Bahia. A sua regulamentação ficou à cargo do Decreto nº 10.039, de 03 de julho de 2006. De acordo com o parágrafo único do artigo 1º da lei, patrimônio cultural constitui-se “[…] pelos bens culturais cuja proteção seja de interesse público, pelo seu reconhecimento social no conjunto das tradições passadas e contemporâneas do Estado” (Bahia, 2003).  

A salvaguarda do patrimônio cultural visa a proteção do saber-fazer, das práticas e lugares que integram a identidade de um grupo ou povo.

Quanto aos bens de natureza imaterial, estes são marcados pela dinamização, já que, uma vez transmitidos de geração em geração, estão sob constante influência do contexto histórico e cultural a que determinado grupo é submetido no decorrer dos tempos, bem como da sua natureza incorpórea, que se manifesta no âmbito material (Telles, 2007).

DA PATRIMONIALIZAÇÃO DO MODO DE PRODUÇÃO DO AZEITE DE DENDÊ

O processo de patrimonialização do modo de fazer tradicional do azeite de dendê de pilão e roldão iniciou-se em 2022. Com a sua instauração, houve a anuência da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos da Bahia (ABAM), e o azeite de dendê foi vinculado como bem cultural associado ao ofício das baianas de acarajé – bem cultural de matriz africana reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural do Brasil, inscrito no Livro dos Saberes em 10 de dezembro de 2004, registrado em 14 de janeiro de 2005 (Brasil, 2004; Mendel, 2018; Queiroz, 2020). 

Foram empreendidas pesquisas bibliográficas preliminares, e em 2024 foi realizada uma visita técnica ao Baixo-Sul (Cerqueira, Nobre, 2025), região produtora de azeite de dendê, também conhecida como Costa do Dendê, responsável pelo fornecimento para toda a Bahia (Santos, 2024).

Como etapas seguintes, foi elaborado parecer técnico preliminar, com a análise enquanto sistema agrícola familiar e sistema agrícola tradicional. Chegando-se à fase atual de mobilização dos detentores culturais para a construção do dossiê, que, conforme publicação de Notificação Pública no Diário Oficial do Estado da Bahia, em 15 de julho de 2025 (Cerqueira, Nobre, 2025). 

DA DENOMINAÇÃO DE ORIGEM AZEITE DA COSTA DO DENDÊ

Com foco na proteção e preservação do território da Costa do Dendê, lugar onde se concentra a produção de azeite de dendê no Estado da Bahia, os produtores, em articulação com representantes de instituições e da sociedade civil se articularam com vistas ao registro da indicação geográfica Azeite da Costa do Dendê na modalidade denominação de origem. 

A indicação geográfica é o nome de lugar que se tornou conhecido pela produção de determinado produto ou pela prestação de um dado serviço. Uma das espécies de direito da propriedade industrial, é tutelada pela Lei nº 9.279/1996, conhecida como Lei da Propriedade Industrial (LPI), nos artigos 176 a 182. Existem duas espécies de indicação geográfica, a Indicação de Procedência (IP) e a Denominação de Origem (DO) (artigo 176, LPI) (Brasil, 1996). 

A indicação de procedência é o nome geográfico que se tornou conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou prestação de determinado serviço (artigo 177, LPI) (Brasil, 1996).

A denominação de origem é o nome geográfico que se tornou conhecido pela produção de dado produto ou prestação de um serviço, no entanto aqui as qualidades e características desse bem se devem exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluindo os fatores naturais e humanos.

Ou seja, não é apenas a existência de uma reputação como lugar de produção, mas também deve haver um nexo de causalidade, um elo entre as qualidades do produto ou serviço e os elementos naturais e humanos existentes no território. Os elementos naturais, tais como relevo, pluviosidade, solo, ventos, e os aspectos humanos, tal como o saber-fazer local singulares naquele território são os responsáveis por tornar aquele bem distinto de outros existentes no mercado. 

A mobilização em torno do reconhecimento da indicação geográfica iniciou-se em dezembro de 2018 (Caldas, 2025). Em busca de fomento para o projeto, a equipe executora foi contemplada no Edital FAPESB/SECTI/SDR nº 02/2022 – Propostas inovadoras para o desenvolvimento da agricultura familiar no estado da Bahia, bem como no Edital PAEX/UFBA, em 2024. 

DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DO TERRITÓRIO

Um elemento que une os dois institutos do patrimônio cultural imaterial e a indicação geográfica é o saber-fazer. Apesar do âmbito de proteção ser distinto, com o patrimônio cultural imaterial voltando-se para o bem imaterial como expressão da cultura de um grupo e a indicação geográfica para a proteção do território, do nome geográfico contra o uso indevido por terceiros, ambos protegem o modo de produção tradicional de determinado produto e/ou serviço, que se transmite de geração em geração. 

A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial prevê, em seu artigo 13 medidas que deverão ser adotadas pelos Estados como forma de salvaguardar o patrimônio cultural imaterial. Dentre elas consta a prevista na alínea “c”: “fomentar estudos científicos, técnicos e artísticos, bem como metodologias de pesquisa, para a salvaguarda eficaz do patrimônio cultural imaterial, e em particular do patrimônio cultural imaterial que se encontre em perigo”. 

É obrigação do Estado proteger o patrimônio cultural imaterial em perigo, e isso ocorrerá por meio de políticas públicas, que também são um dever, não apenas nesse contexto de perigo, mas justamente nas fases anteriores, para preservação e proteção evitando, justamente, chegar a esse estágio.

Aplicado ao contexto do modo de fazer tradicional do azeite de dendê de pilão e roldão, para que esse saber-fazer se mantenha preservado e perpetue entre as gerações é necessário que o produto sob o qual ele se aplica também seja protegido.

Por ser a matéria-prima através da qual o patrimônio cultural se manifesta, um está intimamente ligado ao outro.

Nesse sentido, uma vez reconhecido como um bem cultural, e com base no dispositivo citado alhures, tornar-se-á necessário que o governo do Estado da Bahia intervenha no cenário de produção atual, investindo em políticas públicas, que há muito são reivindicadas pelos produtores locais, auxiliando, assim, na produção do dendê. E, com isso, no território. 

A Constituição Federal de 1988 é clara no § 1º do artigo 216 ao prever como obrigação do poder público, em conjunto com a comunidade, proteger o patrimônio cultural brasileiro.

E essa proteção pode se dar a partir de agora pois, de acordo com o artigo 6º da Lei Estadual nº 8.895/2003, na Bahia, uma vez instaurados os processos de tombamento e inventário para preservação (nessa categoria que foi solicitado o registro do modo de produção do azeite de dendê), “por ato do Diretor Geral do IPAC, após instrução sumária, deferindo proposta apresentada por qualquer pessoa, ou de ofício, assegura ao bem, até o ato de inscrição, o mesmo regime dos bens protegidos”.

Ou seja, mesmo com o processo em tramitação, os bens imateriais cujo registro foi solicitado gozam do mesmo regime de proteção daqueles já registrados. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do contexto em que está inserida a produção de azeite de dendê na Região da Costa do Dendê, no Estado da Bahia, demonstra-se salutar que os produtores e detentores desse bem cultural imaterial o protejam, se valendo de todos os meios e ferramentas disponíveis no sistema jurídico brasileiro com vistas à sua preservação e, consequente, fomento.

O que foi materializado através da solicitação de salvaguarda como patrimônio cultural imaterial, no âmbito do Estado da Bahia, e a execução do projeto para registro da indicação geográfica. 

Nesse movimento protecionista, as articulações iniciaram-se em torno da proteção do nome de lugar.

Entretanto, o processo de patrimonialização que se consubstanciou em seguida, para além da proteção do saber-fazer aplicado à produção do azeite de dendê, demonstra reverberar efeitos também para a proteção do território pois, a reputação e notoriedade que o território adquiriu advém de um processo de longo prazo, onde o modo de fazer tradicional foi transmitido de geração em geração entre os produtores sediados na região, e o registro como patrimônio cultural imaterial vem na esteira de preservação e proteção desse elemento.

Além disso, a própria legislação determina ser dever do Estado proteger o patrimônio cultural imaterial, em conjunto com a comunidade, que se materializa através da execução de políticas públicas voltadas a esse fim. 

REFERÊNCIAS:

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 out. 1998. 

BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 7 ago. 2000.

BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 15 maio 1996. 

BRASIL. Ministério da Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Certidão de Registro de Bem Cultural – Oficio das Baianas de Acarajé. Brasília, 21 dez. 2004. Disponível : <https://bcr.iphan.gov.br/documentos-do-process/certidao-de-registro-de-bem-cultural-oficio-das-baianas-de-acaraje/>. Acesso em: 19 jul. 2025.

CALDAS, Alcides dos Santos. Ações para o Registro de Denominação de Origem do Azeite da Costa do Dendê no INPI. Salvador. 27 mar. 2025. Apresentação. 12 slides. color, Seminário Ações estruturantes para o estabelecimento dos registros de denominação de origem e de patrimônio cultural e imaterial para o Azeite da Costa do Dendê. 

CERQUEIRA, Adriana; NOBRE, Ellys. Possibilidades e limites da Política de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial Registro do Modo de Fazer o Azeite de Dendê de Pilão. Salvador. 27 mar. 2025. Apresentação. 27 slides. color, Seminário Ações estruturantes para o estabelecimento dos registros de denominação de origem e de patrimônio cultural e imaterial para o Azeite da Costa do Dendê. 

MENDEL, Debora Simões de Souza. Nas ruas com as baianas de acarajé: desafios, lutas e representatividade. História Oral, [S. l.], v. 21, n. 1, p. 95-119, jan./jun. 2018. Disponível em: <https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/796>. Acesso em: 19 jul. 2025.

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