Classificação Jurídica e o Tratamento Tributário dos Criptoativos no Direito Brasileiro

Autora: Laura Rendak Dalberto e Oscar Cidri

Este artigo examina a classificação jurídica e o tratamento tributário dos criptoativos no Brasil, especialmente no que se refere à incidência do Imposto de Renda sobre ganhos de capital. Diante da ausência de legislação específica e do crescimento exponencial do mercado digital, a pesquisa analisa como Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários e Receita Federal vêm enquadrando esses ativos. Adota-se abordagem qualitativa, exploratória e dedutiva, baseada em legislação, doutrina e jurisprudência. Os resultados indicam que, embora não sejam equiparados à moeda de curso legal nem, em regra, a valores mobiliários, os criptoativos são reconhecidos como bens imateriais com valor econômico, sujeitos à tributação pela Lei nº 7.713/1988. Discute-se também a Medida Provisória nº 1.303/2025, que extingue a isenção mensal de R$ 35.000,00 e institui alíquota única de 17,5%. Conclui-se que a integração entre Direito Digital e Direito Tributário é necessária para reduzir a insegurança jurídica e promover justiça fiscal.

Palavras-chave: Criptoativos; Natureza Jurídica; Direito Digital; Direito Tributário; Imposto de Renda; Ganho de Capital.

INTRODUÇÃO

A ascensão dos criptoativos, iniciada com o surgimento do Bitcoin em 2009, representa uma transformação significativa nas relações econômicas e financeiras globais (Werle, 2021). Estes ativos digitais permitem transações financeiras diretas entre indivíduos e empresas, sem a necessidade da intermediação de instituições financeiras tradicionais (Werle, 2021). 

O mercado de criptoativos têm experimentado um crescimento exponencial no Brasil e no mundo, atraindo cada vez mais investidores, instituições financeiras e empresas de tecnologia. Essa expansão não se restringe ao uso das criptomoedas mais conhecidas, como o Bitcoin e o Ethereum, mas também abrange novos formatos, como os tokens não fungíveis (NFTs), as stablecoins e, mais recentemente, operações estruturadas no âmbito das finanças descentralizadas (DeFi). 

A sua natureza descentralizada e global impôs desafios substanciais ao ordenamento jurídico brasileiro, que se viu na contingência de adaptar estruturas conceituais e regulatórias preexistentes a uma realidade tecnológica em rápida evolução A constante inovação tecnológica e o caráter disruptivo desses ativos exigem adaptações contínuas da estrutura legal e tributária, sob pena de gerar insegurança jurídica e dificuldades de fiscalização.

Nesse cenário, a correta qualificação jurídica dos criptoativos torna-se premissa indispensável para determinar a incidência do Imposto de Renda sobre o ganho de capital, especialmente em operações de permuta e alienação. O tema revela-se controvertido justamente pela ausência de consenso quanto à natureza desses ativos, que podem ser interpretados ora como moedas, ora como valores mobiliários, ou ainda como bens imateriais, classificação esta adotada de forma predominante pela Receita Federal.

Diante disso, pode-se questionar sobre qual a natureza jurídica dos criptoativos no Direito brasileiro e quais as consequências dessa classificação para a tributação, especialmente em relação ao Imposto de Renda. A resposta a essa questão é essencial para compreender o atual tratamento tributário atribuído aos criptoativos e verificar se ele se mostra adequado à realidade econômica e tecnológica.

A relevância deste estudo decorre da ausência de legislação específica, e, sobretudo, da importância econômica e fiscal que o tema assume, tendo em vista o crescente volume de operações realizadas com criptoativos no mercado nacional e internacional.

Nesse ponto, a pesquisa se insere na intersecção do Direito Digital com o Direito Tributário, pois a compreensão dos criptoativos como fenômeno digital é o que possibilita seu correto enquadramento jurídico e sua adequada tributação. Enquanto o Direito Digital busca compreender os impactos jurídicos das inovações tecnológicas, o Direito Tributário se ocupa de analisar os reflexos econômicos e fiscais dessas transformações. A intersecção entre ambos os ramos revela-se fundamental, pois a compreensão dos criptoativos como fenômeno digital é o que possibilita seu correto enquadramento jurídico e, consequentemente, sua adequada tributação.

I. DA NATUREZA JURÍDICA DOS CRIPTOATIVOS

I.I Definição dos Criptoativos 

A adequada qualificação jurídica dos criptoativos constitui pressuposto essencial para a sua correta tributação, cuja crescente utilização e elevado grau de sofisticação tecnológica tornam imperativa uma resposta normativa clara e eficaz. 

A natureza inovadora e disruptiva desses ativos, contudo, não pode servir como escudo contra a incidência tributária, sob pena de se criarem espaços artificiais de blindagem fiscal, incompatíveis com os princípios constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva.

Do ponto de vista mercadológico, o termo criptoativo ou ativo virtual designa qualquer ativo digital criado por meio de criptografia e tecnologia de registros distribuídos (Distributed Ledger Technology – DLT), a exemplo do blockchain, cuja emissão e circulação, quando realizadas em redes descentralizadas, prescindem de autoridade central.

Os criptoativos podem ser definidos como representações digitais de valor, protegidas por técnicas de criptografia e registradas em redes descentralizadas de blockchain, transferíveis eletronicamente e utilizáveis para diversas finalidades, tais como meio de troca, reserva de valor ou investimento (CASTRO, 2022). 

Diferentemente da moeda fiduciária, não possuem curso forçado nem emissão centralizada por um banco estatal, o que lhes confere natureza híbrida e desafiadora para a tutela do Direito (PEREIRA; SANTOS, 2023). Essa estrutura tecnológica garante autonomia funcional e novas formas de circulação de valor.

As principais características dos criptoativos são: (i) descentralização, uma vez que sua emissão e validação não dependem de autoridade central, mas de consenso em rede; (ii) segurança criptográfica, que garante a autenticidade e a imutabilidade das transações; (iii) pseudonimato, já que as transações são públicas, mas os usuários podem permanecer anônimos; (iv) volatilidade, resultante da oscilação de preços em razão da oferta e demanda; e (v) transnacionalidade, pois circulam em ambiente global, muitas vezes além das fronteiras de jurisdições específicas (COSTA, 2021).

I.II Classificação Jurídica dos Criptoativos no Ordenamento Jurídico Brasileiro 

No ordenamento jurídico brasileiro, por muito tempo, a ausência de uma legislação específica e abrangente faz com que sua natureza jurídica seja objeto de intensos debates. Diferentes órgãos reguladores – como o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a Receita Federal – já emitiram entendimentos sobre o tema, embora não uniformes. 

O Banco Central do Brasil, em seus comunicados oficiais – Comunicado nº 25.306 e  Comunicado nº 31.379 (BRASIL, 2014; BRASIL, 2017), é claro ao afirmar que as criptomoedas não são moedas de curso legal. Essa posição se justifica pela ausência de dois elementos cruciais: a emissão por uma autoridade monetária e a garantia estatal. O próprio ordenamento jurídico nacional, conforme a Constituição de 1988, confere ao Banco Central o monopólio da emissão de moeda.

Além disso, os criptoativos não se enquadram como moeda por não cumprirem, de forma cumulativa, seus quatro requisitos essenciais: meio de troca, reserva de valor, unidade monetária e instrumento de pagamento (BINNIE; MARTINS, 2015).

Embora alguns criptoativos desempenhem funções econômicas que lembram as da moeda, eles não são reconhecidos juridicamente como tal. A ausência de um valor nominal fixo (característico das moedas fiduciárias) e a constante e elevada oscilação de preços demonstram sua falta de liquidez e incerteza material, afastando-os da definição de moeda (MARIZ, 2020).

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) reconhece que certos tokens podem ser classificados como valores mobiliários. Essa classificação depende da estrutura e da finalidade do token. Por meio do Ofício Circular nº 1/2018, a CVM estabeleceu que tokens que funcionam como Contratos de Investimento Coletivo (CIC), especialmente aqueles em ofertas públicas que geram expectativa de retorno financeiro, se enquadram nessa categoria, conforme a Lei nº 6.385/1976.

Para fazer essa determinação, a CVM utiliza o “Howey Test”, um critério legal criado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1946 no caso SEC v. W.J. Howey Co.. O teste serve para identificar se uma transação de um ativo digital se qualifica como um contrato de investimento. (CVM, 2024).  Para que um ativo seja considerado um CIC, ele deve atender a quatro critérios cumulativos: o investimento de dinheiro, a participação em um empreendimento comum, a expectativa de lucro e o fato de esse lucro vir principalmente dos esforços de terceiros. 

Com base nesse teste, a CVM  diferenciar entre ativos que são apenas moedas ou bens digitais (como o Bitcoin) e aqueles que são, na verdade, contratos de investimento. Por isso, ativos como o Bitcoin e a maioria das criptomoedas não são considerados valores mobiliários e, portanto, não estão sujeitos à regulação direta da CVM. 

Contudo, essa classificação não é aplicável a todas as criptomoedas, restringindo-se a casos específicos (PEREIRA; SANTOS, 2023).

A Receita Federal tem uma abordagem mais ampla, tratando os criptoativos como bens. Por meio da Instrução Normativa nº 1.888/2019 define os cripto ativos como:

Art. 5º Para fins do disposto nesta Instrução Normativa, considera-se:

I – criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta,cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal; e […].”

Além disso, em seus manuais de “Perguntas e Respostas” do Imposto de Renda, a RFB orienta que sejam declarados na ficha de bens e direitos. Essa classificação se mostra mais abrangente, pois reconhece os criptoativos como ativos patrimoniais suscetíveis de alienação, avaliação econômica e tributação, ainda que não desempenhem função típica de moeda ou valor mobiliário (COSTA, 2021).

 

Ao tratá-los como bens, a Receita Federal os reconhece como ativos patrimoniais que podem ser avaliados economicamente, alienados e, consequentemente, tributados. A Instrução Normativa estabeleceu a obrigação de informar essas operações, e os ganhos de capital obtidos na venda de criptoativos estão sujeitos à tributação, nos termos regulamentados pelo Decreto Nº 9.580/2018, atual Regulamento do Imposto de Renda.

 

Dessa forma, sob o prisma do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), é possível classificar os criptoativos no conceito de bens ou ativos imateriais, sujeitos ao regime jurídico aplicável nos termos do disposto no Livro II, Título Único, da Parte Geral, do Código Civil. Essa classificação decorre diretamente de suas características intrínsecas: eles não possuem existência física ou corpórea, mas são inegavelmente dotados de valor econômico e são passíveis de apropriação, posse e transferência, configurando-se como uma nova forma de patrimônio. 

 

Dessa maneira, as transações de compra e venda mediante pagamento em criptomoedas configuram transações de troca, permuta ou escambo de ativos, sendo regidas pelo Livro I, Título VI, Capítulo II, da Parte Especial, do Código Civil e devendo ser tributadas se auferido ganho de capital.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem consolidado o entendimento de que os criptoativos, embora não se confundam com moeda fiduciária ou valores mobiliários, são considerados “bens com valor econômico” e, portanto, “passíveis de penhora” em processos de execução. A título exemplificativo, verifica-se o RECURSO ESPECIAL Nº 2127038 – SP (2024/0066151-9), no qual o Relator Ministro Humberto Martins equipara os ativos digitais a outros bens integrantes do patrimônio do devedor, confirmando sua natureza jurídica como propriedade para fins legais e econômicos:

 

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. POSSIBILIDADE DE EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO ÀS CORRETORAS DE CRIPTOATIVOS COM A FINALIDADE DE LOCALIZAR E PENHORAR ATIVOS FINANCEIROS DO DEVEDOR. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. [..] 3. Registre-se que a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil – IN RFB n. 1.888/2019 institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil. 4. Trata-se de um ativo financeiro passível de tributação, cujas operações devem ser declaradas à Receita Federal, sendo, portanto, um bem de valor econômico, suscetível de eventual constrição. […]. Recurso especial provido. (BRASIL, 2025) (grifei)

 

Assim, apesar das discussões sobre a natureza jurídica multifacetada ou “camaleônica” (TADEU, 2021, p. 90) dos criptoativos, há convergência no reconhecimento de seu caráter patrimonial. 

Isso pois a classificação como bens se fundamenta na satisfação dos quatro requisitos da noção jurídica de bem econômico: utilidade, limitação de oferta, valoração pecuniária e possibilidade de apropriação. Assim, mesmo consistindo em códigos eletrônicos, os criptoativos possuem utilidade para seus usuários, têm oferta limitada (como o teto de 21 milhões de Bitcoins), recebem valor atribuído pelo mercado e são passíveis de apropriação e transação (WERLE, 2021).

Dessa maneira, independentemente da terminologia utilizada, a existência de valor econômico e a possibilidade de alienação inserem os criptoativos no campo de incidência tributária, tendo em vista que, no que se refere à tributação, a Lei nº 7.713/1988 estabelece que o ganho de capital consiste na diferença positiva entre o valor de alienação e o custo de aquisição do bem ou direito, o que abrange os criptoativos em razão de sua qualificação como ativos patrimoniais.

II. DO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DOS CRIPTOATIVOS

Para adentrar-se especificamente na análise do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (comumente denominado Imposto de Renda, IR, ou, ainda, IRPJ ou IRPF, quando se referir ao IR incidente sobre a pessoa jurídica ou sobre a pessoa física), deve-se aferir a natureza dos criptoativos para os efeitos deste imposto, uma vez que essa análise terá impacto direto em sua tributação pelo IR.

Assim, sabe-se que os criptoativos possuem natureza sui generis, mas não há como afirmar ao certo, a partir de categorias jurídicas predefinidas, o que seria o Bitcoin. (TOMÉ, 2019.) 

II.I Do Imposto de Renda sobre o Ganho de Capital

O tratamento tributário dos criptoativos no Brasil, sob a égide da legislação atual, baseia-se na equiparação desses ativos a “bens ou direitos” para fins de Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF). A Receita Federal do Brasil (RFB) tem orientado que o ganho de capital auferido na alienação de criptomoedas é tributado segundo o disposto no art. 21 da Lei nº 8.981/1995 e na Lei nº 9.532/1997.

A Constituição Federal atribuiu competência à União para instituir o Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza, conforme previsto em seu art. 153, III, que dispõe:

Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

III – renda e proventos de qualquer natureza;

Embora contemple a renda e os proventos de qualquer natureza, a Constituição não lhes confere definição exaustiva, restringindo-se o constituinte a estabelecer um núcleo mínimo, de natureza ampla, associado à ideia de acréscimo patrimonial.

Ilustrativamente, no que se refere à interpretação doutrinária e jurisprudencial conferida ao art. 153, III, CF, o Recurso Extraordinário 1.063.187/SC reitera a premissa de que “…  a materialidade do tributo está relacionada à existência de acréscimo patrimonial, aspecto ligado às ideias de renda e de proventos de qualquer natureza”:

Ademais, a Constituição não exige que o rendimento provenha de fonte habitual ou periódica, nem que derive de atividade lícita ou tradicionalmente reconhecida como fonte de renda. Ao contrário, ao mencionar “proventos de qualquer natureza”, consagra o princípio da universalidade da renda, conferindo margem ao legislador para alcançar, inclusive, novas manifestações de riqueza.

A disciplina constitucional do Imposto de Renda abre margem, portanto, para a consagração de um conceito abrangente de renda. ressalta-se que a menção aos “proventos de qualquer natureza” possibilita ao  alcançar quaisquer  novas manifestações de riqueza, inclusive as operações de permuta de criptoativos.

Nestes termos, a disciplina infraconstitucional do Imposto de Renda é dada sobretudo pelo art. 43 do Código Tributário Nacional – CTN, conforme o qual “… o imposto (…) tem como fato gerador a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda (…) ou de proventos de qualquer natureza”:

Art. 43. O impôsto, de competência da União, sôbre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

Ademais, ainda nos termos do art. 43 do CTN, não basta a existência de um acréscimo patrimonial: é indispensável a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda ou dos proventos. A exigência de “disponibilidade” traduz, segundo Quiroga e Schoueri, a concretização da capacidade contributiva: “há disponibilidade quando o beneficiário pode, segundo seu entendimento, empregar os recursos para a destinação que lhe aprouver” (Schoueri, Quiroga Mosquera, 2020, p. 15-16).

A disponibilidade econômica é aquela revelada no plano fático, enquanto a jurídica decorre da titularidade de um crédito ou bem com valor. Assim, por exemplo,  na permuta de criptoativos na qual há diferença positiva entre o valor do ativo recebido e do ativo transferido, configura acréscimo patrimonial disponível e, por isso, tributável.

A Lei nº 7.713/88 complementa a disciplina do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF) e estabelece, em seu art. 3º, §2º, que a diferença positiva entre o valor da transmissão do bem e o respectivo custo de aquisição configura ganho de capital, integrando o rendimento bruto do contribuinte:

Art. 3º O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta Lei.

(…)

  • 2º Integrará o rendimento bruto, como ganho de capital, o resultado da soma dos ganhos auferidos no mês, decorrentes de alienação de bens ou direitos de qualquer natureza, considerando-se como ganho a diferença positiva entre o valor de transmissão do bem ou direito e o respectivo custo de aquisição corrigido monetariamente, observado o disposto nos arts. 15 a 22 desta Lei.

Em consonância, o art. 2º da mesma lei determina que “… o imposto de renda das pessoas físicas será devido, mensalmente, à medida em que os rendimentos e ganhos de capital forem percebidos.”; ou seja, o imposto incidirá sobre rendimentos percebidos por pessoas físicas no momento em que ocorrer sua disponibilidade, como explanado acima. 

Nesse mesmo sentido, o art. 43 do CTN autoriza a tributação dos acréscimos patrimoniais, como o ganho de capital. O tratamento tributário atual não viola qualquer garantia constitucional, tampouco extrapola os limites da competência tributária da União.

Embora a legislação não mencione expressamente os criptoativos, não há dúvidas que  tais ativos são “bens ou direitos” para fins de incidência do Imposto de Renda sobre o ganho de capital, sujeitando-os às mesmas regras aplicáveis à alienação de outros bens e direitos, conforme será demonstrado a seguir.

II.II Particularidades do Ganho de Capital

A tributação do ganho de capital sobre a alienação de criptoativos, no regime atualmente vigente, segue a sistemática das alíquotas progressivas aplicáveis a outros bens e direitos, variando entre 15% e 22,5% conforme o montante do lucro obtido (RECEITA FEDERAL DO BRASIL, 2023). O recolhimento do imposto é mensal e deve ser realizado via Documento de Arrecadação de Receitas Federais (DARF) até o último dia útil do mês subsequente à operação que gerou o ganho. Esse enquadramento somente é possível porque os criptoativos foram juridicamente reconhecidos como bens imateriais dotados de valor econômico, o que os insere no campo de incidência do Imposto de Renda (COSTA, 2021).

 A base de cálculo corresponde ao ganho líquido, apurado pela diferença entre o valor de alienação e o custo de aquisição, devendo o contribuinte utilizar o método do custo médio ponderado, orientação semelhante à adotada no mercado acionário. Ainda que seja possível deduzir despesas necessárias à operação, como taxas de corretagem, a ausência de regulamentação detalhada sobre o mercado cripto cria margens de insegurança jurídica para o investidor, que pode enfrentar interpretações divergentes pela Receita Federal em eventual fiscalização.

 A ausência de disposições específicas sobre operações comuns no mercado digital, como permutas entre diferentes criptoativos, staking, liquidez em plataformas DeFi e a negociação de NFTs, gera insegurança jurídica e abre margem para interpretações divergentes tanto pela Receita Federal quanto pelos contribuintes. Além disso, o modelo brasileiro ainda se mostra menos detalhado que em outras jurisdições, como os Estados Unidos, que já regulamentam o reporte obrigatório de transações em criptoativos pelo Internal Revenue Service (IRS), e a Alemanha, que prevê isenção em casos de alienações realizadas após o prazo de um ano de detenção (OECD, 2023).

Um aspecto de destaque do regime atual é a isenção do imposto para alienações que, somadas no mês, não ultrapassem o montante de R$ 35.000,00.Importa destacar que esse limite se refere ao valor de alienação e não ao lucro obtido, abrangendo o conjunto dos criptoativos negociados, independentemente do local da operação. 

Essa regra funciona como um mecanismo de incentivo indireto à entrada de pequenos investidores, conferindo maior democratização ao mercado digital. Além disso, a lógica da isenção está alinhada ao princípio constitucional da capacidade contributiva (CF, art. 145, §1º), pois reduz a carga fiscal dos contribuintes de menor poder aquisitivo e concentra a tributação nos ganhos mais expressivos.

 Importa ressaltar que esse limite se refere ao valor total das vendas, e não ao lucro auferido, e que a regra abrange a totalidade dos criptoativos negociados, como Bitcoin, altcoins, stablecoins e até tokens não fungíveis (NFTs), independentemente de a negociação ocorrer no Brasil ou no exterior (CARVALHO; BIASI, 2022). Essa norma beneficia sobretudo investidores de pequeno e médio porte, funcionando como um incentivo indireto ao ingresso no mercado de ativos digitais.

Contudo, o cenário pode se alterar de forma significativa com a Medida Provisória nº 1.303/2025, que propõe a eliminação da isenção mensal de R$ 35.000,00 e a adoção de uma alíquota única de 17,5% sobre os ganhos de capital com criptoativos. Caso aprovada pelo Congresso, a mudança entrará em vigor em 2026 e integrará uma agenda mais ampla de aumento de arrecadação. 

Tal alteração representa não apenas uma simplificação administrativa, mas também uma inflexão de política tributária, pois elimina a progressividade em favor de uma tributação linear. Se, por um lado, grandes investidores que antes arcavam com 22,5% sobre lucros elevados passam a contribuir menos, por outro, pequenos investidores — antes beneficiados pela isenção — passam a ser onerados, configurando uma inversão distributiva que contraria o princípio da capacidade contributiva.

Essa mudança tem suscitado críticas doutrinárias, pois, ao desestimular a participação de pequenos e médios investidores e ao aumentar a complexidade da conformidade fiscal, corre-se o risco de reduzir a própria base de arrecadação. Nessas esferas, a dificuldade de rastreamento é consideravelmente maior, visto que a fiscalização depende quase exclusivamente da autorregulação do contribuinte. 

Há, ainda, o risco de intensificação da migração para exchanges internacionais e soluções de finanças descentralizadas, ambientes nos quais a fiscalização tributária brasileira enfrenta limitações técnicas e depende fortemente da autorregulação do contribuinte (FERREIRA, 2024). Em outras palavras, a busca por incremento arrecadatório pode resultar em efeito contrário, prejudicando a eficiência fiscal e ampliando a evasão em um mercado de natureza global e descentralizada.

CONCLUSÃO

A classificação jurídica e o tratamento tributário dos criptoativos no Brasil revelam uma lacuna regulatória que impõe desafios ao ordenamento jurídico. A natureza híbrida e “camaleônica” desses ativos, que não se encaixam perfeitamente em categorias jurídicas tradicionais como moeda ou valor mobiliário, exigiu que diferentes órgãos reguladores adotassem entendimentos próprios e, por vezes, divergentes.

Ainda que tais ativos não possam ser equiparados à moeda de curso legal, nem se confundam, em regra, com valores mobiliários, consolidou-se a compreensão de que possuem natureza patrimonial e devem ser enquadrados como bens imateriais, dotados de valor econômico, passíveis de apropriação, alienação e, consequentemente, de tributação.

A análise desenvolvida ao longo deste trabalho demonstrou que a qualificação jurídica dos criptoativos constitui requisito fundamental para a definição de seu regime tributário no Brasil, especialmente no que se refere à incidência do Imposto de Renda sobre ganhos de capital. 

Do ponto de vista tributário, observou-se que a Receita Federal tem adotado a sistemática de equiparação dos criptoativos a “bens e direitos” para fins de Imposto de Renda, aplicando-lhes as regras gerais de apuração de ganho de capital, com alíquotas progressivas de 15% a 22,5% e isenção mensal para alienações de até R$ 35.000,00. Esse modelo, apesar de pragmático, ainda enfrenta desafios significativos, como a volatilidade dos ativos, a tributação de operações de permuta e a dificuldade de fiscalização de transações realizadas em plataformas internacionais e em sistemas descentralizados (DeFi).

A iminente aprovação da Medida Provisória nº 1.303/2025, que propõe a extinção da isenção e a adoção de uma alíquota única de 17,5%, representa uma inflexão relevante na política tributária aplicada ao setor. Embora simplifique a cobrança e amplie a base de incidência, a medida tem sido criticada por potencialmente onerar desproporcionalmente os pequenos investidores, ao mesmo tempo em que reduz a carga tributária dos grandes players, produzindo uma inversão distributiva. Tal cenário acentua a necessidade de um debate mais aprofundado sobre justiça fiscal, eficiência arrecadatória e compatibilidade das normas tributárias com a realidade tecnológica dos criptoativos.

Em última análise, a tributação de criptoativos enfrenta desafios práticos, como a alta volatilidade e a complexidade de calcular o ganho de capital em operações de permuta. Essa situação evidencia o descompasso entre a legislação fiscal, baseada em princípios tradicionais, e a realidade de um mercado global, digital e dinâmico. A solução para essa questão exige uma regulação clara e adequada à natureza desses ativos, que harmonize a necessidade de arrecadação com a realidade econômica dos investidores e o dinamismo do mercado de criptoativos. Somente por meio de uma normatização consistente e adaptável será possível reduzir a insegurança jurídica, garantir a eficácia da fiscalização e promover uma tributação justa e equilibrada, capaz de acompanhar a dinâmica do mercado de ativos digitais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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