O uso de obras musicais em escolas e a exceção à necessidade de autorização: Uma análise à luz da Lei n. 6.910/98 e da Jurisprudência Brasileira

Autora: Lara Sobral Aragão.

Graduada em Direito e doutoranda no programa de pós graduação em Propriedade Intelectual da UFS com pesquisa acerca do estudo comparado Brasil e Espanha sobre usos não autorizados de obras musicais. Pesquisadora sênior no Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR).

Músicas em Atividades Escolares e Exceções Jurídicas

O presente artigo visa investigar as possibilidades de utilização de obras musicais em escolas e eventos escolares à luz da Lei 9.610/98 e das interpretações dadas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.

Como problema de discussão, pretende-se verificar de que forma o uso de músicas em atividades pedagógicas e eventos escolares pode ser enquadrado como exceção à necessidade de autorização prévia e pagamento de diretos por execução pública, em consonância com o direito de acesso e gozo à cultura.

A investigação justifica-se pela relevância do tema no cotidiano escolar onde músicas são frequentemente utilizadas como ferramenta de ensino e expressão artística, o que demanda segurança jurídica para instituições de ensino e educadores.

Como metodologia de pesquisa, adota-se abordagem normativa e doutrinária, com base em marcos legais, decisões judiciais e teorias jurídicas sobre direitos culturais e acesso ao conhecimento, destacando-se os julgamentos do STF na ADPF 183 e na Súmula 83 do STJ.

Entende-se que o uso em questão se trata de uma exceção autorizada pela lei quanto aos direitos do autor, além do reconhecimento do papel social da música como instrumento de ensino, inclusão e desenvolvimento cultural garantindo a efetividade dos direitos fundamentais à educação e à cultura previstos nos artigos 205 e 215 da Constituição Federal.

Conclui-se que o uso de obras musicais no ambiente escolar, quando voltados a fins exclusivamente educativos e desvinculados de interesses comerciais, encontra respaldo legal e jurisprudencial.

Questões introdutórias

A música, para além do divertimento e dispersão cultural, ocupa lugar central nas práticas educativas sendo amplamente utilizada como ferramenta pedagógica nas escolas brasileiras. Seja em sala de aula ou celebrações escolares, a utilização de obras musicais é comum e incentivada pelos educadores.

No entanto, tal uso enfrenta o desafio de conciliar a liberdade educacional com o respeito aos direitos autorais previstos na Lei 9.610/98 (LDA). 

Essa realidade gera insegurança jurídica para instituições de ensino e profissionais da educação especialmente diante da possibilidade de responsabilização por uso indevido de obras protegidas.

Assim, o presente artigo busca esclarecer em que condições a utilização de músicas em contextos escolares pode ser considerada uma exceção à obrigatoriedade de autorização prévia e pagamento de direitos autorais conforme a previsão da LDA e interpretação do STF e STJ. 

A questão não se resume apenas aos aspectos legais, mas também constitucionais, na medida em que se relaciona com os direitos fundamentais à educação e cultura previstos nos artigos 205 e 215 da Constituição Federal (CF/88).

O objetivo é contribuir para a construção de um entendimento jurídico que respeite os direitos dos autores sem desconsiderar o papel da música no processo de formação integral dos alunos. 

Marco legal: A lei 9.610/98 e as exceções autorizadas

A Lei de Direito de Autor, lei que regula os direitos autorais e os que lhe são conexos (art. 1º, LDA), estabelece em seu art. 29 que todo e qualquer uso deve ser autorizado pelo titular dos direitos de exploração econômica, isso inclui a utilização, direta ou indireta, como a representação, execução musical, difusão com o emprego de alto-falantes ou sistemas análogos, sonorização ambiente e exibição audiovisual.

No entanto, os direitos não são absolutos e a LDA também está sujeita a limitações, limitações essas previstas no art.46, os chamados usos livres, que institui, entre outros, que: 

“Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: (…) – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para fins didáticos, sem intuito de lucro, e com indicação da autoria”.

   A lei, ao prever essa exceção, busca compatibilizar os direitos individuais dos autores com os interesses coletivos relacionados à educação e ao acesso à cultura e ao conhecimento da história cultural.

Trata-se de uma manifestação do princípio da função social dos direitos autorais, reconhecido em diversos sistemas jurídicos contemporâneos. Sendo as propriedades intelectuais do criador bens intangíveis, essas também estão submetidas às limitações da função social da propriedade prevista no art. 5º, XXIII, da CF/88.

Segundo Pequeno e Sichel (2023, pg. 7) a função social da propriedade intelectual protegida pelo direito de autor diz respeito ”(…) a promoção de conhecimento e informação em favor do desenvolvimento artístico, científico e cultural do país e do mundo”.

Essa previsão normativa autoriza que obras musicais sejam utilizadas no ambiente escolar sem a necessidade de prévia autorização, desde que o uso não tenha finalidade comercial.

No entanto, destaca-se parte da norma que especifica: “… para fins didáticos”. Assim, questiona-se se o uso de músicas em situações como festas escolares, feiras, confraternizações, eventos, congressos e afins que ocorrem dentro da escola podem ser entendidas como uso em prática de fim didático e, portanto, de uso livre. 

Direito à Educação, à Cultura e a Função Social da Música

A Constituição Federal, em seus artigos 205 e 215, reconhece a educação e a cultura como direitos de todos e dever do Estado, devendo ser promovidas e incentivadas com vistas ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao preparo para o exercício da cidadania e à qualificação para o trabalho. 

Nesse sentido, o uso da música como instrumento pedagógico ganha especial relevância pois contribui não apenas para o ensino de conteúdos específicos, mas também para a formação estética, afetiva e crítica dos estudantes. Além disso, práticas musicais em escolas são importantes meios de inclusão, valorização da diversidade e desenvolvimento de habilidades socioemocionais. 

A dificuldade está em conciliar o uso pedagógico com o respeito aos direitos dos autores . A convivência harmônica entre o uso individual do autor e o uso coletivo por parte da sociedade ainda é um desafio e, apesar de parecer antagônicos, são complementares e interdependentes visto que para haver acesso à cultura e conhecimento, é necessário haver produção cultural (Pequeno; Sichel. 2023).

Destaca-se ainda o posicionamento doutrinário (ASCENÇÃO,2008) que defende que o ponto comum entre direito de autor e o direito de acesso à cultura é o equilíbrio e o bom senso para que o direito de autor não seja uma arma contra a cultura. 

A Jurisprudência do STF e STJ sobre o uso de músicas no ambiente escolar

Quando na vigência da Lei 3.857/60, antes da promulgação da CF/88, destaca-se o fato que a liberdade de expressão da atividade artística e liberdade profissional era limitada diante da previsão do art.18 que imputava o exercício profissional somente aos músicos que fossem devidamente registrados à Ordem dos Músicos do Brasil, o que dificultava o uso de obras musicais nas escolas.

No entanto, tal norma não foi recepcionada pela CF/88 considerando-se especialmente o valor social do trabalho e a liberdade de manifestação artística, e através da ADPF 183, foi declarada inconstitucional (STF/2009). 

Já durante a vigência da Lei 5.988/73, aceitava-se que o uso das obras fosse realizado sem autorização desde que não houvesse ganhos econômicos e assim, uso em eventos beneficentes, educativos e sem fins lucrativos, poderiam ser realizados sem autorização e pagamento dos direitos autorais. Tal Lei foi revogada com o advento da Lei 9.610/98. 

No entendimento atual, onde a Lei 9.610/98 regulamenta o uso das obras artísticas, o STF através da súmula 83 determina que o pagamento é, em regra, obrigatório visto não haver a necessidade de obtenção de lucro, direto ou indireto, para que a cobrança seja realizada, conforme se vê abaixo na decisão do STJ:

“A utilização de obras musicais em espetáculos gratuitos promovidos mesmo que por instituição educacional e sem fins lucrativos enseja a cobrança de direitos autorais à luz da nova Lei n. 9.610/98, que não mais está condicionada à aferição de lucro direto ou indireto pelo ente promotor. Súmula 83/STJ”. (REsp 2002521 SP 2022/0140323-8).  

Ademais o judiciário usa a regra dos três passos, prevista no acordo TRIPS, que se trata de uma orientação aos legisladores de como proceder quanto aos usos das obras protegidas pelo direito autoral.

Apesar de não ter sido incorporada à legislação brasileira, o que na visão de WACHOWICZ (2015) provoca um desequilíbrio entre os direitos do autor e os direitos da sociedade em ter direito de acesso à cultura e ao conhecimento, a jurisprudência nacional faz uso da regra como tese jurídica e suporte na análise judicial conforme pode-se perceber na decisão do STJ: 

“De acordo com a Regra dos 3 Passos, será admissível limitar o direito de exclusivo do autor quando: se estiver diante de certos casos especiais; a utilização não prejudicar a exploração normal da obra e a utilização não causar prejuízo injustificada aos legítimos interesses do autor”. (AREsp 556767 ES 2014/0191537-6).

No mais, destaca-se o julgado do STJ quanto aos usos de execução musical de fins culturais quando realizadas com objetivos pedagógicos:

“Não há obrigação de pagamento de retribuição ao ECAD na hipótese de representação teatral ou execução musical, quando realizadas com objetivos pedagógicos, de fins culturais, não havendo em qualquer caso intuito de lucro”. (REsp 1795223 RN 2019/0028811-7).

No entanto, destaca-se o julgado do STJ de 2022 que:

condena o Centro Educacional Morumbi Araraquara LTDA ao pagamento ao ECAD com base na Súmula 83, pela execução pública de obras musicais durante a festa escolar realizada nas dependências da escola onde houve a contratação de músicos para realizarem uma apresentação musical (REsp 2002521 SP 2022/0140323-8). 

Considerações finais

Pelo exposto, entende-se que o uso pedagógico e estritamente educativo é considerado um uso livre, no entanto é preciso atentar-se a atividades escolares que extrapolam o ambiente didático, sobretudo com participação externa ou contratação de artistas, pois o uso pela execução pública das obras pode ser objeto de cobrança por parte do ECAD diante da necessidade de proteção dos direitos dos autores. 

Destaca-se a decisão proferida em REsp 1795223 RN 2019/0028811-7 que a princípio pode parecer uma contradição junto à Súmula 83. No entanto, é importante atentar-se ao fato que ‘fins culturais com objetivos pedagógicos’ remete a participação dos alunos na atividade cultural, seja ela uma apresentação musical, seja uma apresentação com o uso de obras musicais, visto que de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as atividades pedagógicas devem estar alinhadas com competências e habilidades específicas dos estudantes, considerando o contexto sociocultural e promovendo a formação integral.

No mais, segundo Libâneo (2013), uma atividade pedagógica é uma ação intencional que visa promover aprendizagens planejadas com base em objetivos educacionais, articulando conteúdos, métodos e recursos em função do desenvolvimento do aluno. 

Quadro comparativo: usos permitidos X usos passíveis de cobrança dos direitos autorais. 

Situação Permitido sem autorização (uso livre) Sujeito a pagamento ao ECAD
Uso em sala de aula com objetivos didáticos ✔ Sim ✖ Não
Apresentações internas com participação dos alunos (projetos, feiras) ✔ Sim ✖ Não
Evento com músicos contratados ✖ Não ✔ Sim
Festa escolar com convidados externos (mesmo sem ingresso) ✖ Não ✔ Sim
Execução de trilha sonora em evento comemorativo ✖ Não ✔ Sim

Fonte: Elaborado pela autora (2025)

Assim, é essencial que se diferencie o uso da música como ferramenta de ensino, da música como entretenimento.

A Súmula 83 refere-se a situações em que a música está sendo usada como entretenimento e não como ferramenta de aprendizagem e fruição cultural. No mais, o equilíbrio entre proteção aos autores e acesso à cultura é condição para uma educação verdadeiramente cidadã e inclusiva. 

 

Bibliografia

ADPF 83. Med. Caut. em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 183-8.  Distrito Federal. STF. 2009. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adpf183CM.pdf

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação, 2017. Disponível em: https://basenacionalcomum.mec.gov.br/ 

CF/88. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Constituição da República Federativa do Brasil — Tribunal Superior Eleitoral

ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 2013.

Lei 3.857/60. Cria a Ordem dos Músicos do Brasil. Disponível em: L3857

Lei 9.610/98. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Disponível em: L9610

PEQUENO, Joelson Gomes; SICHEL, Débora Lacs. A Convivência Harmônica entre o Direito Autoral e o Direito de Acesso à Cultura e ao Conhecimento. Revista Foco, v. 16, n. 7, p. 01-24. Curitiba/PR. 2023. DOI: 10.54751/revistafoco.v16n7-087. 

WAZCHOWICZ, Marcos. A revisão da lei autoral principais alterações: debates e motivações. PIDCC, Aracaju, Ano IV, Edição nº 08/2015, p.542 a 562. 2015. Disponível em: www.pidcc.com.br. ISSN eletrônico 2316-8080

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