Dolce & Gabanna: Intersecções entre Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural

Autoras: Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo e Lígia Loregian Penkal

Em  1985, o estilista siciliano Domenico Dolce e o estilista milanês Stefano Gabbana fundaram a marca de roupas Dolce & Gabbana, que se tornou uma referência italiana no mercado da moda de luxo mundial. Do traço autoral à marca, da produção industrial à referência cultural, a história da grife é um caso interessante para a análise do diálogo entre o direito da propriedade intelectual e o patrimônio cultural.

A moda é um campo social e econômico em que se a circulação de ativos intelectuais é constante e muitas vezes sobrepostos: direitos autorais, desenho industrial, marcas e mesmo patentes.

Conforme Patrícia Porto, “sobre o mesmo corpus mechanicum pode existir um ou vários corpus mysticum, ou seja, sobre um mesmo bem material, pode existir um ou vários bens incorpóreos” (PORTO, 2010, p. 109). 

A propriedade intelectual é tradicionalmente vista como um ativo econômico e regulada pelo direito privado. Em que medida, porém, pode-se pensar na intersecção entre a propriedade intelectual e o patrimônio cultural, este objeto de direito público? O caso da grife “Dolce & Gabbana” pode servir de exemplo de análise. 

Domenico Dolce  e Stefano Gabbana: a construção da propriedade intelectual

Os estilistas Domenico Dolce e Stefano Gabbana se conheceram no cenário da moda de Milão e fundaram a sua primeira boutique em 1986. Inicialmente, os croquis foram inspirados na estética barroca siciliana e nas mulheres que encarnaram a beleza dramática e sensual italiana, como Sophia Loren.

Aos poucos, outras culturas da península itálica foram sendo incorporadas aos novos desenhos, trazendo não apenas referências simbólicas regionais, mas o uso de materiais próprios de cada território.

Exemplo disso é o uso de diferentes estampas, rendas e tecidos, que valorizam o modo de ser e fazer das diversas culturas da Itália.  

No que diz respeito à propriedade intelectual, é possível perceber como a moda é um espaço em que a sobreposição de ativos intelectuais é frequente.

A moda autoral apresenta traços característicos dos estilistas, possibilita enxergar um contributo mínimo de originalidade, em que vestimentas icônicas ocupam as passarelas, incorporam-se às estéticas pessoais, são comercializadas, mas também exibidas em espaços museais. A roupa deixa de ser apenas um bem econômico, para tornar-se um objeto de arte, passível de direitos autorais. 

Por sua vez, a marca permite aos estilistas imprimirem a sua identidade simbólica a todos os bens que produzem, associando-a ao traço autoral. Quando a vestimenta é produzida em massa, pode, inclusive, deslocar-se do aspecto artesanal e ensejar direitos intelectuais de desenho industrial. 

Ao referir-se às culturas italianas, a grife valoriza aspectos do patrimônio cultural do território nacional. A história da Dolce & Gabbana, já com 40 anos de existência, traz em sua trajetória a construção de um novo símbolo que também referencia a Itália, tornando-se a grife, ela mesma, uma representação da identidade do patrimônio cultural italiano.  

Os direitos autorais protegem obras artísticas, literárias e científicas, e são regulados pela Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais – LDA), influenciada pela doutrina francesa do droit d’auteur e baseada na Convenção de Berna, resguarda os direitos patrimoniais e morais do autor. 

Há uma grande discussão se a moda pode ser considerada arte e, para essa questão, não há uma resposta definitiva: quem entende que criações de moda são arte, defende o fato de a moda estar em constante inovação, de as coleções serem fruto de elevados investimentos e com alto teor artístico (OLIVEIRA, 2019).

Entretanto, quem entende que moda não é arte, defende que é um setor meramente utilitário ou funcional – pensamento herdado da Revolução Industrial que acarretou a ruptura histórica entre arte e artesanato diante da indústria (VALENTE, 2019). Importante compreender, no entanto, que a função utilitária do vestuário não retira o caráter artístico do design de moda. Ademais, alguns acessórios e produtos têm propósitos totalmente estéticos. 

Conforme Newton Silveira (SILVEIRA, 2012), o design – entendido como desenho industrial possibilitado pela mecanização – possui estreita relação entre a técnica (função) e a estética (forma), pois, na prática, os dois conceitos se misturam, passando a ser indissociáveis no sistema industrial e na compreensão da estética contemporânea.

A tentativa de separar essas duas características, portanto, parece ilógica e distante da realidade prática, em que um único objeto pode possuir tanto valor funcional, quanto estético, no mesmo grau de importância.

Ademais da proteção intelectual de resultados finais de uma vestimenta, é possível pensar na proteção de estágios intermediários das criações de moda, como de rascunhos e esboços, por meio do Direito Autoral, em analogia à arquitetura. Para tanto, é também relevante discutir qual seria o grau de desenvolvimento necessário para que um esboço constitua uma obra original, passível de proteção. 

O desenho industrial protege somente os aspectos estéticos do objeto, os quais devem ser externos, visíveis e com a função de criar desejo de consumo.

Podem ser elementos tridimensionais ou bidimensionais, desde que com aplicabilidade industrial. Ou seja, formas, cores, texturas, modelagens e outras características estéticas passíveis de reprodução em escala industrial podem ser registradas como desenhos industriais. Por sua vez, se a forma plástica ornamental for interna, oculta, essencial à função do artefato, ou feita em caráter único, não se enquadra como desenho industrial (BARBOSA, 2017). 

Nesse contexto, para proteger um design de moda, considerando a divisão clássica da propriedade intelectual, ou se pressupõe que o design tem um caráter artístico, para protegê-lo com o direito autoral, ou se classifica como um bem industrial, para enquadrá-lo como propriedade industrial[4]. Por exemplo, a proteção de uma estampa de vestuário pode se dar por meio de desenho industrial, desde que obedecidos os requisitos necessários, ou pelo direito autoral.

No entanto, uma estampa pode atender aos requisitos de ambos os institutos, quando é autoral, nova, aplicada em um objeto de forma original, por exemplo, uma estampa aplicada em escala industrial em camisetas, vestidos, mochilas, entre outros produtos têxteis, e que se enquadre como criação, caso seja considerada original, assinada por um artista ou reproduza uma obra de arte. Isso resulta em um design de moda que une o belo ao útil, de modo que é impossível determinar quais características são puramente estéticas ou funcionais. 

A construção de uma herança comum italiana

Sem esgotar a dimensão da proteção intelectual, importa perceber a relação que a construção de significados, a originalidade e a formação da identidade a partir da moda pode ter com a dinâmica da configuração do patrimônio cultural. O exemplo da grife Dolce & Gabbana chama a atenção para a concepção de patrimônio cultural italiana. 

O direito italiano prevê a proteção constitucional dos bens culturais, informando que “a República promove o desenvolvimento da cultura e da pesquisa científica e tecnológica.

Protege a paisagem e o patrimônio histórico e artístico da Nação.” (ITÁLIA, 1949, Art. 9). Por sua vez, a Itália define legalmente o patrimônio cultural no artigo 2, do Código dos Bens Culturais e da Paisagem (Codice dei Beni Culturali e del Paesaggio), aprovado pelo Decreto Legislativo n. 42, de 22 de janeiro de 2004, privilegiando o reconhecimento de bens culturais e de bens paisagísticos.

Os bens culturais serim aqueles móveis ou imóveis de interesse artístico, histórico, arqueológico, antropológico, bibliográfico ou documental relevante, que incluem os monumentos históricos e artísticos; as pinturas, esculturas, afrescos; os arquivos, bibliotecas e livros raros, bem como os instrumentos musicais históricos.

Os bens paisagísticos são compostos de áreas ou elementos naturais protegidos por seu valor estético, cultural ou ambiental, como as vistas panorâmicas, as regiões montanhosas, costeiras, florestais, os jardins históricos e as áreas declaradas de especial interesse público. 

No Brasil, o Artigo 216 da Constituição Federal de 1988 estabelece como patrimônio cultural os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Percebe-se que a constituição brasileira apresenta uma concepção mais abrangente que a italiana, ao compreender a dimensão imaterial do patrimônio cultural.

Assim, o patrimônio cultural é formado pelo conjunto de bens, tradições e expressões de um país, povo ou sociedade, os quais possuem importância histórica, artística, científica, simbólica ou afetiva.

É uma herança comum, que traz consigo a representação da identidade, da memória e dos valores de uma comunidade, transmitidos de geração em geração.

Dolce & Gabbana se apropria das referências culturais da Itália e as transforma com identidade própria, sob a qual compõe a sua arte e a sua empresa, bem como inscreve a sua memória. Ainda que o direito italiano não abranja a clara perspectiva do reconhecimento da importância imaterial do patrimônio cultural como o faz o direito brasileiro, a grife Dolce & Gabbana, a partir do empreendimento autoral, da marca e do desenho industrial sedimenta-se como referência cultural, capaz de transformar-se para além da propriedade intelectual em uma identidade cultural que referencia o patrimônio comum italiano. 

 

Referências:

BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual: Desenhos Industriais, Cultivares, Segredo Industrial, Contratos de Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. 

BRASIL. Presidência da República. Lei no 9.279/96, de 14 de maio de 1996. Regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Diário Oficial da União. Brasília, 14/05/1996.

ITÁLIA. COSTITUZIONE DELLA REPUBBLICA ITALIANA. In: Presidenza del Consiglio dei Ministri. Disponível em: https://www.normattiva.it/uri-res/N2Ls?urn:nir:stato:costituzione:1947-12-27~art9 Acesso em: 31 jul 2025

ITÁLIA. DECRETO LEGISLATIVO 22 gennaio 2004, n. 42. In: Presidenza del Consiglio dei Ministri. Disponível em: https://www.normattiva.it/uri-res/N2Ls?urn:nir:stato:decreto.legislativo:2004-01-22;42 Acesso em: 31 jul 2025

LASSOIE, Olivier. Different Legal Issues in the Fashion Industry. In: SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Fashion Law: Direito da Moda. Grupo Almedina, 2020. cap. 5. Páginas 119-131.

OLIVEIRA, Thiago de. A proteção jurídica das criações de moda: entre o direito de autor e o desenho ou modelo. Coimbra: Almedina, 2019 OLIVEIRA, Thiago de. A proteção jurídica das criações de moda: entre o direito de autor e o desenho ou modelo. Coimbra: Almedina, 2019. Página 94.

PORTO, Patrícia. Limites à sobreposição de direitos à propriedade intelectual. In: Revista da ABPI n. 109 – NOV/DEZ 2010. Rio de Janeiro: Revista da ABPI, 2010. 

SILVEIRA, Newton. Direito de Autor no Design. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

VALENTE, Luiz Guilherme Veiga. Direito, Arte e Indústria: o problema da divisão da propriedade intelectual na Economia Criativa. Tese de Doutorado, USP, 2019.

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