
Promoção e Proteção do Patrimônio Cultural e as Instituições de Ensino Superior: Uma relação necessária
Autora: Marcelle Cortiano
Breve qualificação: Produtora Cultural no Museu de Arte da Universidade Federal do Paraná (MusA-UFPR). Mestra em Direito (UFPR), com pesquisa na área de Direitos Culturais. Pesquisadora do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR) e da Clínica de Direito e Arte da UFPR. Membro da Comissão de Assuntos Culturais da OAB/PR. Advogada e publicitária.
Compreensão do contexto da Sociedade Informacional
O cenário impermanente em que se desenvolvem as relações sociais é um dos aspectos centrais da Sociedade Informacional. Nesse contexto, os direitos intelectuais estão sujeitos a adquirir novos escopos ou ressignificar aqueles já existentes, exigindo dos atores sociais medidas que atendam a essa variação acelerada de circunstâncias.
Conquanto não haja alternativas satisfatórias para acompanhar com rigor a velocidade das mudanças, o ordenamento jurídico e as práticas socioculturais podem se aliar na busca por arranjos mais favoráveis para o desempenho desses direitos, inclusive aqueles que dizem respeito aos direitos culturais.
O marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura (2024) define os direitos culturais como o “exercício das garantias jurídicas de direito autoral, de criação, de produção, de distribuição, de difusão, de registro, de fruição e de consumo […] de bens e serviços vinculados às linguagens artísticas, aos conhecimentos, às tradições, à história, à memória coletiva, à língua, a saberes e fazeres e ao patrimônio cultural”, destacando o respeito à plena liberdade de expressão da atividade intelectual e artística e à dignidade da pessoa humana.
Tamanha é a relevância dos direitos culturais que o próprio desenvolvimento social se vincula a eles, à medida em que o alastramento das práticas culturais pelas camadas da coletividade conduz a uma sociedade do conhecimento (ASCENSÃO, 2003).
A efetividade do exercício desses direitos está associada à capacidade do Estado de viabilizar condições para seu desempenho, garantindo à sociedade o direito à criação cultural (científica, artística e tecnológica), o acesso às fontes da cultura nacional, a difusão da cultura, a liberdade de formas de expressão cultural, a liberdade de manifestações culturais e também a formação do patrimônio cultural e proteção dos bens culturais (SILVA, 2012).
A realização de direitos culturais como missão da sociedade – e das universidades
Apesar da dimensão ocupada pelos direitos culturais, a atuação do poder público não basta para o alcance de um cenário minimamente adequado; por essa razão, a Constituição da República Federativa do Brasil estabelece que a promoção e a proteção do patrimônio cultural brasileiro serão empreendidas “com a colaboração da comunidade” (art. 216, § 1º), atribuindo, ainda que imprecisa e parcialmente, um importante dever à coletividade.
Adentrar no mérito da pertinência da “delegação” desta missão à sociedade (quem representa a “comunidade”?, quais os limites dessa colaboração?, entre outros possíveis questionamentos) extrapola a brevidade da reflexão proposta.
Ainda assim, convida-se a um exame crítico desse trecho da redação constitucional, que em outra oportunidade de pesquisa pode vir a ser objeto de leitura mais detida.
Uma vez incorporada ao argumento a premissa do dever colaborativo do poder público e da comunidade na promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, passa-se a avaliar como os indivíduos ou grupos podem atuar para satisfazer o compromisso que lhes foi atribuído – sem, contudo, desonerar o Estado de seu papel primário. No contexto da sociedade informacional, em que os ativos culturais e intelectuais estão no centro das disputas de poder, a qualificação de entidades com capacidade científica e tecnológica permite reconhecer seu encargo e sua autoridade na promoção dos direitos intelectuais.
Nessa categoria, encontram-se as universidades, tanto públicas quanto particulares.
A capacitação e a assimilação de saberes das instituições de ensino superior as situam em posições de destaque em termos de recursos tecnológicos, científicos e humanos para oferecer à sociedade medidas instrutivas e resolutivas nas mais variadas abordagens. A prioridade da pesquisa científica, inclusive, é “o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação”, voltando-se preponderantemente à solução dos problemas brasileiros (CRFB, art. 218, §§ 1º e 2º).
Em seu Título VIII (Da Ordem Social), a CRFB atribui às universidades autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial (art. 207), o que permite que as instituições realizem seus compromissos constitucionais de maneira autossuficiente e soberana, sempre obedecendo ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Logicamente, as entidades universitárias estão sujeitas à fiscalização do poder público no que couber, sobretudo naquelas iniciativas que envolvem recursos governamentais.
Para colocar em prática seus encargos perante a sociedade, as universidades dispõem de uma gama generosa de possibilidades. A pesquisa formal, a transferência de tecnologia e a divulgação científica são algumas dessas alternativas, seja através de recursos próprios ou de investimentos de entidades interessadas na condução de investigações específicas.
De maneira prática, o modo mais evidente de envolver diretamente a comunidade na construção de soluções próprias para suas demandas é por meio da extensão universitária, ou seja, “a atividade […] que promove a interação transformadora entre as instituições de ensino superior e os outros setores da sociedade, por meio da produção e da aplicação do conhecimento, em articulação permanente com o ensino e a pesquisa” (Resolução CNE/CES nº 7, de 18 de dezembro de 2018).
A extensão universitária e a promoção e proteção do patrimônio cultural
Na reflexão que se desenvolve, a importância da extensão universitária reside no fato de permitir uma interlocução direta, sem intermediários, com as demandas sociais, vez que os docentes e estudantes são encorajados a dialogar com agentes e frequentar aquelas comunidades em que pretendem colocar em prática suas propostas.
Além disso, muitos projetos extensionistas têm a capacidade de oferecer, tanto quanto possível, recursos imediatos em resposta às necessidades sociais, ao passo que pesquisas científicas complexas (e sua posterior avaliação pela comunidade científica e publicização) são processos necessariamente mais longos e menos dialógicos no que diz respeito à interação com a comunidade externa às instituições, justamente para cumprir o rigor acadêmico que análises desse porte exigem.
É oportuno apontar que não se busca, nesse breve argumento, contrapor a atividade extensionista e a pesquisa científica – até pelo caráter indissociável de ambas –, mas procura-se destacar o potencial prático que os projetos de extensão universitária manifestam perante a sociedade.
É esta, afinal, sua característica central. Em última análise, a atividade extensionista coloca em prática, para fora dos limites da universidade, métodos que foram previamente investigados, relatados e testados com rigor na academia, reafirmando a necessária indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
A Lei nº 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de Educação, estabelece em sua Meta 12.7 que as universidades deverão assegurar que sejam destinados a programas e projetos de extensão universitária pelo menos 10% (dez por cento) do total de créditos curriculares exigidos para a graduação, “orientando sua ação, prioritariamente, para áreas de grande pertinência social”. O texto legal enfatiza a sociedade como destinatária das atividades extensionistas, de forma que tenha suas demandas percebidas e assistidas pelas competências universitárias.
Em 2023, o novo parecer do Conselho Nacional de Educação registra a concepção da extensão universitária como “função potencializadora na formação dos estudantes e na capacidade de intervir em benefício da sociedade”, com a finalidade de transformar a realidade social, sobretudo naquelas localidades em que as universidades estejam inseridas (Parecer CNE/CES nº 576/2023, aprovado em 9 de agosto de 2023). O documento aguarda homologação, para então orientar a atualização da resolução que estabelece as diretrizes para as Políticas de Extensão da Educação Superior Brasileira.
No cenário cultural, a definição permite aferir que os projetos de extensão universitária podem ser implementados com o objetivo de atender às carências sociais nesse campo, contribuindo assim para o exercício dos direitos culturais em suas variadas especificidades.
A atuação conjunta dos métodos da universidade e dos saberes das comunidades pode ampliar as possibilidades da criação intelectual e artística, promover maior difusão das expressões culturais em formatos novos ou alternativos, consolidar meios de garantir a liberdade de criação e o acesso à cultura e ainda fortalecer a promoção e a proteção do patrimônio cultural.
Além disso, a atividade extensionista tem a capacidade de retroalimentar a própria pesquisa científica nas instituições de ensino superior, ao reunir e fornecer subsídios para aprofundar investigações existentes ou para identificar novos problemas de pesquisa. Logo, o potencial científico e a dimensão transformadora da extensão universitária posicionam essas entidades como agentes fundamentais na construção do debate sobre direitos culturais, em um método que busca relacionar o cumprimento da exigência legal, o envolvimento das comunidades destinatárias e o rigor acadêmico.
Estudo de caso: a Universidade Federal do Paraná
Aplicando a reflexão proposta a um panorama fático, avalia-se o quadro da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Trata-se de uma instituição de ensino superior pública e centenária, que figura entre as mais tradicionais do país. Na contagem mais recente, no mês de julho de 2025, a UFPR registrava em seu relatório público 74 projetos de extensão cadastrados na área temática da “Cultura”. Em valores absolutos, esse número equivale a menos de 7% de todos os projetos vigentes na Universidade (1.062).
Há a possibilidade de relações transversais, em que as práticas culturais – e, consequentemente, a realização de direitos culturais –, atravessam propostas extensionistas em outras áreas temáticas (a saber, as demais áreas são: Comunicação, Direitos Humanos e Justiça, Educação, Meio ambiente, Saúde, Tecnologia e Produção e, por fim, Trabalho).
Sem afastar a pertinência desses atravessamentos, a reflexão busca situar a cultura enquanto protagonista das propostas registradas e, por essa razão, as relações incidentais não oferecem, neste momento, contributos para compor a discussão. Além disso, sua identificação exigiria a análise qualitativa da descrição, da justificativa, dos objetivos e da metodologia de cada um dos projetos, o que adentra em uma seara distinta de investigação.
Para alcançar um equilíbrio temático, cada uma das oito áreas possíveis deveria abranger 12,5% do total de projetos, ou seja, aproximadamente 132 atividades extensionistas.
Esse cálculo superficial, que considera apenas os números absolutos reportados até o momento, revela um déficit de quase 60 projetos na área temática da Cultura.
Além dessa insuficiência, há que se destacar que, devido à ampla definição do termo “cultura” do ponto de vista antropológico, nem todos os projetos registrados sob essa área temática referem-se necessariamente a atividades extensionistas de promoção dos direitos intelectuais e culturais, vez que podem estar relacionados a outros aspectos da atividade humana.
Ainda assim, o recorte superficial permite inferências. Considerando o total de projetos extensionistas cadastrados na UFPR, os índices evidenciam um potencial temático ainda a ser explorado, sobretudo em uma instituição multidisciplinar com cursos de graduação como Produção Cultural, Gestão Cultural e Artes, além de Programas de Pós-graduação em Música, Design e Políticas Públicas.
A partir de diálogos e reflexões entre seus pares, e em conjunto com as trocas de saberes com os grupos sociais, esse arcabouço intelectual pode oferecer à comunidade formas de fazer a administração adequada de seu patrimônio cultural e ampliar as possibilidades para o exercício dos direitos intelectuais.
Considerações finais
Em síntese, o patrimônio cultural de uma comunidade é um reflexo de sua própria cultura (CUNHA FILHO, 2018). A proteção autoral, a liberdade de criação, o acesso às manifestações culturais, enfim, todos os direitos relacionados à matriz intelectual daquela comunidade são atravessados pela necessidade de preservação e promoção desse patrimônio. No Brasil, o texto constitucional atribui explicitamente esse dever ao poder público, colaborativamente com a comunidade.
A qualificação técnica das instituições de ensino superior as situa, dentre outros agentes, como potenciais protagonistas – ou, ao menos, facilitadoras significativas – na condução dessa missão.
Mesmo quando os recursos financeiros são insuficientes, universidades capacitadas dispõem de capital tecnológico, científico e humano para discutir propostas e elaborar arranjos que podem otimizar o desempenho de direitos, inclusive os culturais. E com a adequada destinação de aportes financeiros, esse potencial pode se ampliar e se aperfeiçoar.
Embora a extensão universitária seja um caminho viável para a realização de práticas culturais junto à sociedade – incluindo meios de fomentar a preservação do patrimônio e o acesso à cultura –, essa relação ainda demonstra ser pouco explorada no recorte institucional observado.
E ainda que seja possível identificar iniciativas esparsas, analisar seu grau de penetração e efetividade exigiria metodologia distinta da adotada por essa breve reflexão. Independentemente da ausência desse dimensionamento, o reconhecimento, a valorização e a consolidação dessas iniciativas isoladas são passos iniciais indispensáveis para reiterar o papel transformador que as universidades podem exercer nas vivências socioculturais e na preservação da memória coletiva.
A despeito de um cenário que ainda se desdobra e busca se estabelecer, trazer ao debate a função da extensão universitária na promoção dos direitos culturais – e, em consequência, no estímulo à cidadania e à inclusão social – é imperioso e deve ser mais recorrente nas interações entre academia, sociedade e ordenamento jurídico.
Somente assim é possível contribuir para a sustentabilidade das iniciativas já existentes, além de fomentar a proposição de novas alternativas extensionistas para a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro.
REFERÊNCIAS
ASCENSÃO, José de Oliveira. Propriedade Intelectual e Internet. Florianópolis, 14 nov. 2003. Texto referente à palestra proferida na Conferência II Ciberética. Disponível em: https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Ascensao-Jose-PROPRIEDADE-INTELECTUAL-E-INTERNET.pdf. Acesso em: 17 jul. 2025.
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