
Propriedade Intelectual e Inteligência Artificial no BRICS
Autora: Cristina Baum da Silva
Advogada, Mestre em Direito (PUCRS ) pós graduada em Direito Internacional com extensão em Propriedade intelectual pela UFRGS, pesquisadora GEDAI e NUPPI
Propriedade Intelectual e Inteligência Artificial no BRICS
Foi publicado, no dia 06/07/2025, no site do Ministério das Relações Exteriores, a Declaração dos Líderes do BRICS sobre Governança Global da Inteligência Artificial (IA), no qual foi apresentada durante a cúpula realizada na cidade do Rio de Janeiro, nesse mesmo mês, que abordou-se questões sobre o papel da inteligência artificial no cenário global e, principalmente, sobre os limites éticos e jurídicos no uso de conteúdos de terceiros.
O instrumento, que reúne os países Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, defende que a inteligência artificial precisa ser desenvolvida sob princípios que respeitem a soberania dos países e promovam justiça social, inclusão e desenvolvimento sustentável.
A proposta vai além de princípios genéricos a declaração reconhece que a inteligência artificial tem um potencial transformador para impulsionar inovação e sustentabilidade, mas alerta que esses benefícios só podem ser alcançados se houver governança inclusiva.
O documento também sugere a criação de painéis científicos independentes e um diálogo global contínuo, com envolvimento real de todos os países, sobretudo aqueles em desenvolvimento. É uma tentativa de evitar que o futuro da IA seja decidido por poucos e imposto aos demais como norma universal.
Um dos pilares centrais da proposta é o respeito à soberania nacional, ou seja, cada país deve ter o direito de estabelecer suas próprias regras e prioridades, com base em sua realidade social e cultural.
Nesse sentido, o BRICS defende que os padrões técnicos e protocolos operacionais da IA sejam abertos, auditáveis e com base científica pública. A interoperabilidade entre países e sistemas deve ser incentivada, mas sem que isso implique submissão aos interesses comerciais de grandes conglomerados digitais.
A ciência aberta e os modelos de código livre são apontados como caminhos viáveis para equilibrar inovação e soberania tecnológica.
Mas o recorte que se destaca neste presente texto – e que é fundamental trazer à tona neste momento – diz respeito à propriedade intelectual.
Trata-se de um alerta político: o uso indevido de conteúdos protegidos, sem a devida remuneração, que fere diretamente os direitos de autores, artistas, jornalistas, educadores, pesquisadores e tantos outros profissionais da cultura e da ciência.
O bloco propõe que haja remuneração obrigatória quando conteúdos – como textos, imagens, músicas, obras científicas ou jornalísticas – forem usados para treinar sistemas de inteligência artificial.
Indubitávelmente é um gesto de justiça, mas também de reconhecimento do trabalho humano que está por trás do conteúdo que alimenta esses sistemas. Ou seja, a inteligência artificial não surge do nada. Ela depende de uma vasta base de dados, construída por humanos, muitas vezes sem saber que seus trabalhos e esforços intelectuais estão sendo utilizados, reproduzidos, ressignificados – e, em alguns casos, substituídos por respostas automáticas.
Ignorar este fato, além de injusto, é um risco economico. Como já alertam pesquisadores e entidades do setor cultural, estamos diante de um risco de apagamento da autoria, substituída por modelos opacos, que pouco explicam como chegaram a determinadas conclusões.
O Compromisso do BRICS com a Justiça e Diversidade Cultural
A Declaração dos Líderes do BRICS estabelece uma perspectiva macro-política e regulatória sobre a IA, enfatizando que seu desenvolvimento deve respeitar a soberania dos países e promover justiça social, inclusão e desenvolvimento sustentável e a propriedade intelectual.
Em contraste com abordagens mais brandas adotadas por nações como Estados Unidos e membros da União Europeia, o BRICS defende a proteção da diversidade cultural e dos direitos humanos, propondo a criação de diretrizes multilaterais coordenadas pelas Nações Unidas.
Um ponto central dessa proposta geopolítica é a defesa da remuneração obrigatória para o uso de conteúdos no treinamento de sistemas de inteligência artificial. Isso visa reconhecer o trabalho humano por trás dos dados que alimentam esses sistemas e combater o uso indevido e a coleta automatizada sem consentimento prévio, que representam um risco de apagamento da autoria humana e desconsideração das normas de direitos autorais.
Já em uma perspectiva micro-jurídica e de casos concretos, a ascensão da IA generativa, especialmente na música, tem gerado intensos debates e litígios globais.
Ferramentas como Suno e Udio, que geram faixas musicais completas, levaram a empresas como UMG Recordings e Concord Music Group a processar desenvolvedores de IA por violação de direitos autorais. As alegações incluem o uso não autorizado de gravações de som e composições musicais para treinar os sistemas de IA, bem como infrações no conteúdo gerado.
As defesas frequentemente invocam o “uso justo”, argumentando que as IAs transformam obras existentes ou que o uso se restringe à mineração de dados para identificar padrões.
Contudo, os autores argumentam que tais usos não são transformativos e podem substituir diretamente suas obras protegidas, ameaçando o mercado de licenciamento e a remuneração de criadores humanos.
O cruzamento dessas duas perspectivas revela uma necessidade urgente de governança e regulação.
Enquanto o BRICS advoga por uma estrutura global que garanta a soberania nacional, a ciência aberta e a remuneração justa para os criadores, os casos em tribunais demonstram as consequências diretas da ausência de tais regulamentações.
Cenário da Inteligência Artificial: Propostas do BRICS
A proposta do BRICS de salvaguardar os direitos autorais e a diversidade cultural em um cenário de rápida digitalização ecoa as preocupações levantadas nos litígios sobre IA generativa na indústria musical.
Ambos os âmbitos clamam por uma distinção clara entre ferramentas de IA que apoiam a criação humana e sistemas generativos comerciais com efeitos substitutivos, assegurando que os direitos autorais continuem a ser um incentivo para a criatividade humana e que os artistas sejam devidamente compensados.
Assim é que países como os Estados Unidos da América e membros da União Europeia avançam em legislações mais brandas com foco na inovação tecnológica, o BRICS defende que o desenvolvimento digital precisa caminhar lado a lado com a proteção da diversidade cultural, prevista nos arts 215 e 216 da CF/88, bem como aos preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
O grupo propõe a criação de diretrizes multilaterais, sob a coordenação das Nações Unidas, para garantir que nenhum país – sobretudo os que ainda estão em processo de digitalização plena – seja deixado para trás.
Também destaca-se o fato de que muitos desses conteúdos, que servem de insumo para os sistemas de IA, são coletados de forma automatizada e sem consentimento prévio. Ou seja, há aqui uma clara urgência por regulação, que considere tanto os direitos dos titulares quanto o direito à informação e ao acesso justo ao conhecimento.
É um debate que lembra, em muitos sentidos, a luta pelo acesso à cultura. Assim como se defende tecnologias que permitam o acesso de todos ao patrimônio cultural, precisamos garantir que os autores – especialmente aqueles de contextos periféricos, minoritários ou de comunidades tradicionais – não sejam silenciados pelas engrenagens das novas tecnologias.
A proposta do BRICS, nesse contexto, deve ser vista como um chamado à responsabilidade global.
Não se trata de frear o desenvolvimento da inteligência artificial, mas de pensar sua governança de forma democrática, justa e transparente.
É preciso reconhecer o valor da criação humana e garantir que os direitos autorais, em vez de obstáculos, sejam pontes para o futuro. Um futuro em que a inteligência – natural ou artificial – respeite e valorize a diversidade, a autoria e a dignidade de todos os povos.
A propriedade intelectual, como um direito humano fundamental que é, na medida em que protege não apenas o valor econômico da criação, mas, sobretudo, a dignidade do autor e a identidade cultural dos povos.
No atual cenário digital, marcado pelo avanço da inteligência artificial generativa e streaming, essa proteção adquire novos contornos e urgências. O uso massivo e automatizado de conteúdos protegidos, sem autorização prévia ou qualquer forma de remuneração, representa uma ameaça real à sustentabilidade das atividades criativas e à preservação da diversidade cultural.
BRICS e a Governança Global da IA
Diante disso, a proposta do BRICS de estabelecer salvaguardas jurídicas que assegurem remuneração justa aos titulares de direitos é uma medida necessária para reequilibrar as relações entre inovação tecnológica e os direito de autor.
Proteger a propriedade intelectual, neste contexto, não é um entrave ao progresso, mas uma pilar para que a criação humana continue sendo incentivada, respeitada e reconhecida, mesmo diante de sistemas capazes de simular, replicar e até substituir as obras que têm origem na sensibilidade e no esforço intelectual de pessoas reais.
Referências:
ANDRADE, João. Análise Editorial. Propriedade intelectual: BRICS exigem remuneração por uso de conteúdo em IA. 2025. Disponível em: https://analise.com/noticias/propriedade-intelectual-brics-exigem-remuneracao-por-uso-de-conteudo-em-ia. Acesso em: 28 jul. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28 jul. 2025
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Declaração dos líderes do BRICS sobre governança global da inteligência artificial. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-dos-lideres-do-brics-sobre-governanca-global-da-inteligencia-artificial. Acesso em: 28 jul. 2025.
EXAME. Declaração final do BRICS defende remuneração de conteúdo a produtores por empresas de tecnologia. 2025. Disponível em: https://exame.com/ultimas-noticias/mundo/declaracao-final-do-brics-defende-remuneracao-de-conteudo-a-produtores-por-empresas-de-tecnologia Acesso em: 28 jul. 2025.
FREITAS, Tamires. BRICS e a bússola da IA global: articulações jurídicas e culturais em debate. In: MIGALHAS. São Paulo, 15 jul. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/434562/brics-bussola-da-ia-global. Acesso em: 28 jul. 2025.
INFOMONEY. BRICS defendem pagamento de direito autoral para uso em IA. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mundo/brics-defendem-pagamento-de-direito-autoral-para-uso-em-ia/. Acesso em: 28 jul. 2025.
SCHIRRU, Luca. Direitos autorais, música e IA generativa nos tribunais. In: MIGALHAS. São Paulo, 23 abr. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/429569/direitos-autorais-musica-e-ia-generativa-nos-tribunais. Acesso em: 28 jul. 2025.