Repartição de benefícios que poderiam servir de princípios para Lei Autoral Brasileira

Consentimento prévio e repartição de benefícios como princípios para a Lei de Direitos Autorais brasileira

Maria Helena Japiassu M. de Macedo

Mestranda no PPGD/UFPR

Pesquisadora do GEDAI/UFPR

No mês de agosto, o Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial da Universidade Federal do Paraná – GEDAI/UFPR, publicou o livro “Saúde e Propriedade Intelectual”, coordenado por Marcos Wachowicz e Ângela Kretschmann. Acesso aberto, inovação tecnológica para a saúde, mercado de patentes e propriedade intelectual em tempos de pandemia foram alguns assuntos pesquisados. De minha autoria, publiquei artigo acerca do posicionamento brasileiro nas discussões internacionais acerca das patentes de recursos genéticos com conhecimentos tradicionais associados.

Dedica-se, este estudo, a alargar o diálogo acerca da propriedade intelectual relacionada aos conhecimentos tradicionais e pensar como a avançada Lei 13.123/2005, que versa sobre as patentes de recursos genéticos com conhecimentos tradicionais associados, poderia dialogar com a Lei 9.610/98 (LDA), de forma a proteger as expressões culturais tradicionais.

Na Sociedade Informacional, compreendida como “aquela na qual a informação e o conhecimento são importantes motores econômicos”, práticas culturais revestem-se de grande importância (WACHOWICZ, 2013, p. 220). Nesse contexto, os conhecimentos e expressões culturais tradicionais são formas de bens intangíveis, valorizados pela sociedade informacional e sua economia, na medida em que podem ser passíveis de ser comercializados  e ter aplicação industrial.

Obras intelectuais, advindas da criatividade do espírito humano, como bens literários, artísticos e científicos são objetos da proteção de direitos autorais (Art. 7, LDA). Por sua vez, invenções ou modelos de utilidade são protegidos por patentes, conforme a Lei 9.279/96, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.

O sistema internacional de propriedade intelectual, que abrange, entre outros, as patentes e os direitos autorais, têm sua gênese nos séculos XVIII e XIX, com a assinatura das convenções de Paris (1883), para a proteção industrial, e de Berna (1886), que diz respeito a direitos autorais. Naquele contexto, expandiam-se os efeitos da Revolução Industrial e do pensamento iluminista, com o aprimoramento de tecnologias e a valorização do esforço individual de criação.

Este sistema de proteção influenciou as legislações nacionais que versam sobre direitos autorais e patentes, entre elas as legislações brasileiras mencionadas. Tanto a Lei 9610/98 (referente aos direitos autorais) e a Lei 9279/96 (referente à propriedade industrial) foram promulgadas, após o advento da Constituição Federal brasileira de 1988, que tem no reconhecimento da diversidade cultural do país um valor basilar (Art. 215, V; Art. 126-A, § 1º, I).

Ambas as legislações, portanto, devem respeitar a diversidade cultural do país, enquanto visam proteger os bens intelectuais. A Lei 13.123/2005 amplia a abrangência da proteção patentária, para disciplinar a proteção de patentes quando da utilização de recursos genéticos associados a conhecimentos tradicionais. Esta lei é bastante avançada e, em âmbito internacional, serve de base para o posicionamento brasileiro nas negociações do Comitê Intergovernamental de Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore (IGC), na Organização Mundial de Propriedade Intelectual.

Nessa relação entre patentes e conhecimentos tradicionais:

percebe-se uma diluição de fronteira entre direitos de propriedade industrial e direitos culturais. Por um lado, os recursos genéticos representam insumos materiais a possíveis invenções patenteáveis; por outro, os conhecimentos tradicionais, repassados intergeracionalmente, oferecem insumos imateriais a cientistas e indústrias que visem a beneficiar os recursos genéticos. Neste exemplo, os direitos culturais referem-se aos saberes tradicionais e ao patrimônio biocultural imaterial enquanto os direitos de propriedade industrial preocupam-se com as patentes (MACEDO, 2023, pp. 270-271)

A Lei 13.123/2005 baseou-se nos princípios acordados pelo Brasil na Convenção da Diversidade Biológica (CDB), assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ou ECO-92 e, posteriormente, no posicionamento reforçado na assinatura do Protocolo de Nagoya, em 2021, que dispõe sobre o “Acesso e Repartição de Benefícios da Convenção sobre Diversidade Biológica”.

A CDB estabelece que “cabe a cada país regular, por legislação nacional, o acesso e a repartição de benefícios, bem como o consentimento prévio fundamentado, relativos aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais” (LEGISLAÇÃO, 2020).

A Lei 9.610/98, por outro lado, reconhece a dificuldade em atender à proteção autoral dos conhecimentos étnicos e tradicionais. Isso se deve ao fundamento individualista do sistema de proteção de Berna, que protege as criações individuais ou de autorias coletivas em que é possível identificar o co-autor. Ademais, a legislação prevê um prazo inicial de proteção, a partir do momento da publicação de determinada obra, e que se encerra após 70 anos da morte do autor.

Expressões culturais tradicionais fazem parte de uma cultura coletiva, em que as obras intelectuais expressam um modo de vida particular, onde o valor individual da autoria dilui-se perante o compartilhamento da experiência, a qual é transmitida intergeracionalmente. A circularidade desse saber contraria a linearidade do prazo protetivo autoral. No entanto, essas expressões da criatividade não devem ser tratadas como domínio público, o que ressalva a legislação autoral brasileira, buscando oferecer proteção aos conhecimentos tradicionais (Art. 45, II).

Ocorre que essa ressalva da Lei 9.610/98 jamais foi disciplinada. A quem pertencem, portanto, os direitos de propriedade intelectual associados às expressões culturais tradicionais? Uma reflexão possível seria pensar na disciplina dessa lacuna jurídica a partir dos princípios acolhidos pela 13.123/2005, quais sejam, pensar os usos das expressões culturais tradicionais a partir do consentimento prévio informado pelas comunidades tradicionais e assegurar a elas a repartição dos benefícios alcançados.

 

Referências:

 

BRASIL. Lei 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm Acesso em: 31 ago 2023.

 

BRASIL. Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9610.htm  Acesso em: 31 ago 2023.

 

BRASIL. Lei 13.123, de 20 de maio de 2015. Dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade. Disponível em: L13123 (planalto.gov.br) Acesso em: 31 ago 2023.

 

LEGISLAÇÃO. In: Ministério do Meio Ambiente. 17 nov 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/biodiversidade/patrimonio-genetico/marcos-regulatorios  Acesso em: 31 ago 2023.

 

MACEDO, M. H. J. M. O Brasil e a negociação de um instrumento internacional sobre propriedade intelectual, recursos genéticos e conhecimentos tradicionais no âmbito da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). In Saúde & propriedade intelectual. Marcos Wachowicz, Ângela Kretschmann (Org.). Curitiba: Ioda, 2023.

 

WACHOWICZ, M; KRETSCHMANN, A. Saúde & propriedade intelectual. Marcos Wachowicz, Ângela Kretschmann (Org.). Curitiba: Ioda, 2023.

Trackbacks/Pingbacks

  1. Boletim Gedai Agosto 2023 - GEDAI - […] Helena Japiassu M. de Macedo, pesquisadora-sênior do GEDAI publicou artigo sobre a repartição de benefícios que poderiam servir de…

Enviar Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *