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RIP! A REMIX MANIFESTO

RIP! A REMIX MANIFESTO[1]

Yago Barreto Bezerra[2]

Nos tempos em que a troca de informações é intensa, embalada pela ascensão da Internet, o controle sobre a propriedade intelectual, que pode ser compartilhada facilmente na rede, passou a ficar em xeque. As grandes empresas, geralmente as titulares dos direitos sobre esse tipo de propriedade (que representam filmes, músicas, livros, enfim, todo tipo de invenção humana), a partir de meados de 90 se viram ameaçadas em decorrência de seu produto começar a estar disponível gratuitamente para o seu potencial consumidor. Mais do que isso, outras pessoas passaram a utilizar desse patrimônio privado para compor a sua própria arte.

1.AS CONTRADIÇÕES DO DIREITO DE AUTOR

Em RIP! A Remix Manifesto, documentário dirigido por Brett Gaylor, essas contradições entre o direito autoral (ou direito à propriedade intelectual) e o direito à livre expressão em prol do avanço do próprio objeto incorporado são expressadas em tela para que o interlocutor possa construir a sua própria opinião, embora, desde o início, o diretor já deixe clara a sua posição: a defesa de um domínio público no qual haja de fato a livre troca de informações e o avanço das artes e das ciências não seja obstaculizado pelo direito autoral.

A disputa, em meados dos anos 90 e início do século XXI, se materializou entre os representantes das grandes empresas fonográficas e dos particulares que utilizavam de “suas” músicas para “consumo” próprio ou para criar um novo estilo de arte. O argumento principal das grandes corporações parece demasiado lógico e é baseado no conceito liberal de propriedade, precisamente da doutrina lockeana. Em Locke, a liberdade pode ser entendida como a capacidade de dispor sobre o que se tem do modo como bem lhe aprouver. É um conceito interligado ao de propriedade privada. E o que vem a ser a propriedade? Tudo aquilo que o ser humano conquistou por meio de um trabalho, ou melhor dizendo, de um gasto de energia empregado em prol da coisa ou objeto. Eis, pois, o caráter (quase) absoluto deste direito: o que você conquistou ou construiu por meio de suas próprias forças é seu por direito, e de mais ninguém, a não ser que você assim deseje.

Parece lógico, portanto, que as empresas fonográficas reivindiquem sua propriedade, que foi produzida com seus esforços e que, por conseguinte, apenas necessariamente elas têm o direito de aferir o gozo eventual do objeto construído. A plena disposição da propriedade é, assim, um ato de liberdade, e aquilo que a interfere, compromete ou prejudica configurar-se-ia como um atentado à propriedade particular e, por consequência, à própria liberdade.

2. A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE AUTOR

O direito autoral entra nesse rol de direito, e teve como função inicial justamente a proteção da propriedade intelectual daquele que produziu ou inventou a coisa, garantindo-lhe o seu pleno gozo e coleta de frutos. Nasceu em um contexto de expansão comercial, de estreitamento entre as grandes nações e de maior interconectividade pessoal, sendo expresso em lei pela primeira vez em 1710, pelo Estatuto da Rainha Ana, na Inglaterra. Segundo o Estatuto, os direitos de autor eram protegidos até quatorze anos após a invenção da coisa e, à época, foi medida que buscou incentivar a criação e o desenvolvimento tecnológico.

O outro lado desse entrave vê a questão dos direitos de autor como um empecilho ao progresso das artes e das ciências; vê, ainda, a questão como uma incorporação, por parte de um grupo seleto, da própria cultura. Para os “remixadores”, não existe criação plenamente original: tudo é uma cópia remodelada de algo, ou um produto da mistura de produtos anteriores. A arte que se faz hoje, a cultura que se produz hoje, é resultado da cultura anterior. “A cultura sempre se constrói através do passado”. Somos seres históricos, nascidos em condições histórico-sociais que independem da nossa vontade, e toda a experiência humana, toda a subjetividade e vontade humanas, estão condicionadas ao meio que se nasceu e cresceu. Nesse sentido, proteger os direitos autorais de forma absoluta, sem permitir o acesso de outras pessoas a obras intelectuais, significaria comprometer o avanço e a livre expressão tecnológica, científica, artística, etc.

3. O REMIX E O COPYRIGHT

O diretor denomina o bloco defensor dos direitos de autor de “forças do passado”. Para Brett Gaylor, a remixagem representa a cultura do futuro; ela é tão somente a expressão da mistura que já se fazia há anos, intensificada pelo efeitos da globalização, troca de informações e da Internet. Barrá-la, impedi-la de se manifestar seria ir de encontro à nova sociedade que atualmente se forma. É uma força “natural” que se moldou a partir da revolução da informação e vem se consolidando e aumentando sua pressão. É consequência direta desta revolução. É inevitável, a menos que se freie tal revolução. Por isso, Gaylor a aponta como sendo um movimento do futuro. O que resta às grandes empresas é procurar meios de controle para que possam ainda manter a estrutura econômica, jurídica, ideológica e política existente. Uma prova material disso foi a lei que regulamentou o Copyright (direito à cópia, em inglês), protegendo-o por um período de setenta anos após a morte do autor.

As contradições estão postas. É evidente que, dentro de um mundo predominantemente capitalista, o Copyright precisa ser protegido, pois do contrário, o dono da ideia da coisa não poderia aferir ganhos e, consequentemente, teria sua vida individual prejudicada (a menos que se faça uma revolução socialista e o capital privado de uma hora para outra não sirva mais para nada). Mas, também, parece certo que o domínio absoluto de determinado objeto, a ponto de ninguém mais poder usá-lo para sua própria produção intelectual, se configura como uma manifesta contradição, uma vez que a cultura do presente não poderia ser feita sem a cultura do passado; uma vez que nada poderia ser realizado sem trabalhos anteriores. O foguete não poderia ser inventado sem a invenção da matemática e da física; Maquiavel não teria concebido O Príncipe, tal como é hoje, sem mergulhar nos textos greco-romanos; George Lucas não teria filmado Star Wars sem assistir aos filmes de samurais e ler O Poder do Mito, de Joseph Campbell.

4. OUTRAS QUESTÕES ACERCA DO DIREITO AUTORAL

Há ainda a questão: até onde a ideia pode ser protegida? Até que ponto a ideia é ideia sólida e pronta sobre algo para que possa de fato receber a tutela e o resguardo do direito? Talvez a melhor solução, para o atual cenário mundial, seja o equilíbrio entre estas “duas forças”: assegurar os ganhos do criador, sem no entanto suprimir hipocritamente o desenvolvimento e a livre expressão da tecnologia, das ciências e das artes. Como chegar a esse “caminho do meio”? Possivelmente nem Buda teria uma boa resposta. Quiçá um messias com seus milagres. A história não é feita de heróis; é sim, construída a partir do movimento de uma série de partículas que ora colidem e produzem algo, a nova realidade; a história. Uma peculiaridade da espécie humana: parece existir uma consciência que pode transitar entre diversos pontos de possibilidade e, partir daí, determinar até certo aspecto as transformações materiais.

Eis uma frase que certamente pode representar a posição dos remixadores e esse choque entre o mundo antigo e o novo, para continuar a alusão de Gaylor: “They can take our lives, but they can never take our freedom” (Eles podem tirar nossas vidas, mas nunca poderão tirar nossa liberdade). Sim, esta frase não é de autoria de quem vos escreve. É uma fala retirada do filme Coração Valente, de 1995. Nada desta resenha é puramente original, isto o autor pode assegurar. Será que seremos processados por isso?

BIBLIOGRAFIA

RIP! A Remix Manifesto. Direção: Brett Gaylor, Produção: Daniel Cross, Canadá: National Film Board of Canada, 2008. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LRw8abLSXJ8. Acesso em: 20 de agosto de 2017.

 


[1]GAYLOR, Brett. RIP! A Remix Manifesto, 2008.

[2] Pesquisador da UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO – UFERSA, sob orientação do Professor Rodrigo Vieira Costa (GEDAI/UFPR)