O caso Eli Lilly: abuso da propriedade intelectual e direito da concorrência.

Mariana Lopes de Castro
Érico Klein

Introdução: Propriedade Intelectual e Concorrência como regulações coerentes

O presente artigo se propõe a analisar o impacto do abuso da propriedade intelectual no direito da concorrência. Comumente a interseção entre essas disciplinas é vista como uma relação entre campos opostos, entretanto a devida proteção à propriedade intelectual permite a inovação tecnológica e ganhos sociais, inclusive no âmbito do direito da concorrência. Trata-se de uma relação de equilíbrio recíproco.

Nesta perspectiva, primeiramente faz-se necessária a análise da interseção entre direito da concorrência e propriedade intelectual, para posterior verificação do abuso da propriedade intelectual neste âmbito, por meio da exposição de um caso concreto. Trata-se do caso Eli Lilly, em que as práticas da farmacêutica para exercício de seu direito sobre uma patente, foram entendidas como abusivas.

Inicialmente, destaca-se que o direito da concorrência é o ramo do direito que regula a conduta de agentes econômicos em concorrência no ambiente de mercado, observando devidamente os impactos das relações econômicas no mercado, consumidor, e na sociedade.

Desse modo, a contemporânea regulamentação dos mercados emanada por um poder institucionalizado visa a assegurar a livre concorrência, por meio da imposição de sanções jurídicas.

Estes mecanismos sancionatórios, juntamente com o estabelecimento de normas que regulam operações de concentrações econômicas, controlam a atuação de empresas que detenham poder econômico e evitam infrações à ordem econômica.

Enquanto o direito da propriedade intelectual regula certos bens incorpóreos ou imateriais, criados para a produção de novas obras estéticas e técnicas.

Dessa forma, as Convenções da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI oferece como escopo da propriedade intelectual o conjunto de direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, interpretações, invenções, desenhos e modelos industriais, marcas, firmas e denominações comerciais, bem como à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico.

A possibilidade de garantia de exclusividade de exploração comercial de um determinado bem não é contraditória com a proteção de um mercado competitivo, eficiente e vantajoso para os consumidores.

Sendo assim, as áreas de direito concorrencial e propriedade intelectual se complementam, em razão de suas convergências, sejam estas: (i) o estímulo ao desenvolvimento econômico e tecnológico, (ii) a promoção da inovação, (iii) encorajamento de um mercado justo e competitivo, (iv) a proteção do bem-estar do consumidor.

Fica claro que as diretrizes destes campos são apenas aparentemente opostas, ao passo que ressaltam-se apenas as diferenças intrínsecas no que concerne os meios pelos quais incentivam a inovação.

O direito concorrencial promove a concorrência e coíbe o exercício de poder do mercado, enquanto a propriedade intelectual atua por meio da exclusividade, estimulando o poder de mercado e consequente imposição de preços supra-competitivos.

Em relação ao escopo do presente trabalho, destaca-se que abusa de um direito quem o usa além dos limites jurídicos, conforme leciona Denis Borges Barbosa. Como se verá adiante, o abuso da propriedade intelectual pode se configurar por razões de escopo ou desvio de finalidade. É o que se analisará neste artigo, procurando demonstrar aspectos do abuso de direito no caso em concreto, destacando a coerência entre a propriedade intelectual e a regulação da concorrência.

O Abuso da Propriedade Intelectual

No que concerne ao abuso da propriedade intelectual no direito concorrencial, explica-se, em primeiro momento, como se configura o abuso neste campo. O abuso do escopo da propriedade intelectual se constituiu quando o detentor do direito busca impor a terceiros restrições a que não faz jus, por não estarem englobadas nos direitos a ele concedidos.

Por uma outra vertente, caracteriza-se o abuso por finalidade, quando o uso de direitos da propriedade intelectual extrapola as suas finalidades originais, ou seja, o fim imediato da criação do inventor, ou o fim mediato de atendimento do interesse social.

Desse modo, o abuso da propriedade intelectual se manifesta com a constituição de cláusulas ou condições no licenciamento que podem acarretar no abuso de poder econômico. Algumas das restrições impostas pelo licenciador no âmbito das relações verticais e horizontais podem regular a proteção do ativo intelectual além dos limites da lei, ou até mesmo resultar na alteração das condições normais de mercado e do exercício da livre iniciativa.

A partir deste entendimento, o inciso XIX, do artigo 36 da Lei de Defesa da Concorrência traz que, “exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca” constitui uma infração à ordem econômica. Sendo necessária a avaliação dos impactos de certo abuso no mercado, e devida comprovação de poder de mercado.

CADE e Direito Concorrencial

No que concerne à capitulação legislativa brasileira desta temática, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) apresenta atribuições sobre o direito da propriedade intelectual desde o primórdio de sua atuação.

A Lei n 4.137/1962 criou o CADE e atribuiu-lhe a competência de reprimir o abuso do poder econômico. O artigo 4 da lei já conferia a este órgão a incumbência de declaração automática de cassação de patente que, extinta no país de origem, permanecesse em vigor no país.

Este campo do direito, assim como o CADE, passaram por profunda reestruturação com a Lei nº 8.884/1994, sendo ainda modernizados pela Lei nº 12.529/2011, que atualmente rege o tema no Brasil.

Contemporaneamente, o CADE atua na defesa do direito da concorrência, por meio da constante verificação de infrações econômicas decorrentes de abuso da propriedade intelectual. Ou seja, atualmente há uma série de precedentes administrativos que regulam diversas questões da propriedade intelectual quando em potencial prejuízo à concorrência.

Passa-se, então, à exposição de um caso prático envolvendo os abusos neste campo do direito, visando a ilustrar a necessária interlocução entre os referidos campos do direito para a análise de situações reais.

Propriedade Intelectual e Direito Concorrencial: O Caso Eli Lilly

Aborda-se o caso Eli Lilly, envolvendo companhia farmacêutica multinacional condenada pelo CADE em razão de práticas entendidas como abusivas relacionadas à propriedade intelectual, especificamente patentes. O referido caso foi resolvido com decisão que enfatizou aspectos da proteção da concorrência.

O contexto analisado é o da indústria farmacêutica brasileira nas décadas de 1990 e 2000, fortemente impactado por multinacionais como a Eli Lilly e marcado pelas alterações legislativas provenientes, principalmente, do Acordo TRIPs e da Lei de Propriedade Industrial de 1996, que revogou o Código da Propriedade Intelectual de 1971.

Anteriormente, nos diplomas de 1945 e 1971, a legislação brasileira vedava a concessão de patentes relacionadas aos setores farmacêutico, químico e alimentício, visando a proteger o amplo desenvolvimento de tais setores e evitando a exclusividade (por vezes tratada como monopólio artificial) característica da proteção patentária.

Entretanto, o Acordo de TRIPs implementou uma mudança neste setor, ao impedir que países tenham como política legislativa a proibição do patenteamento de tecnologias farmacêuticas e químicas, o que antes era permitido pela Convenção Paris. Assim, após a assinatura do acordo TRIPs pelo Brasil e diversos outros países em desenvolvimento, foi necessária a readequação das políticas de propriedade industrial de todos os signatários.

Neste cenário se insere o caso Eli Lilly: a referida indústria farmacêutica requereu o patenteamento do medicamento à base de cloridrato de gencitabina, por ela desenvolvido e fabricado.

Nesse sentido, o processo administrativo n. 08012.011508/2007- 91 instaurado no CADE, discutiu as práticas da indústria farmacêutica que asseguraram a ela provisoriamente direitos exclusivos da comercialização, sem que a empresa realmente tivesse obtido a patente.

Este é um precedente fundamental do CADE, que trata sobre as consequências do abuso do direito de peticionar para a ampliação ilegal de direitos de propriedade intelectual na concorrência. Isso porque, a Eli Lilly adquiriu, por meio de inúmeras manobras consideradas maliciosas, o direito de comercialização exclusivo do produto farmacêutico supracitado. Assim, a expansão desse direito, ainda que provisória, foi extremamente lesiva à concorrência.

O principal ato que consolidou o abuso de direito pela farmacêutica foi a promoção de diversas ações judiciais, com a omissão de informações relevantes sobre seus pedidos de patente, culminando com decisão que lhe concedeu monopólio temporário do produto, especificamente quanto ao tratamento de câncer de mama, ao impedir que concorrentes registrassem produtos perante a Anvisa.

Ainda que a decisão, proferida à época pelo TRF-1 e posteriormente cassada pelo STJ, se restringisse ao tratamento de câncer de mama, a empresa procurou estender sua abrangência a outras finalidades terapêuticas, alastrando ainda mais o abuso de direito a uma tentativa de monopólio indevido do uso da substância aqui analisada.

Dessa forma, Sob a égide da lei vigente à época, a Eli Lilly foi condenada por limitar, falsear e prejudicar a livre concorrência (lei no 8.884/94, artigo 20, I); exercer de forma abusiva a sua posição dominante (artigo 20, IV); limitar e impedir o acesso de novas empresas no mercado (artigo 21, IV); criar dificuldades ao funcionamento de empresa concorrente (artigo 21, V); e impedir a exploração de direitos de propriedade industrial (artigo 21, XVI).

Considerando-se os ensinamentos de Leonardo Casagrande, as infrações à ordem econômica são verificadas conforme os efeitos líquidos que produzem.

Especificamente, no caso em questão, a obtenção da comercialização exclusiva do produto farmacêutico por parte da Eli Lilly resultou em efeitos anticompetitivos tão graves que nenhuma outra empresa poderia comercializar produto contendo o cloridrato de gencitabina para o tratamento de câncer no Brasil.

A empresa, então, foi multada pelo CADE em 36.6 milhões de reais em 2015. A ênfase do processo foi o período entre julho de 2007 e março de 2008, em que a Eli Lilly exerceu monopólio do produto. Observou-se, como exemplo do dano causado à concorrência e ao interesse público pela empresa, pregão público em que a empresa praticou preço de 540 reais pelo produto. Passado o período de monopólio, concorrentes comercializavam o produto a 189 reais.

Considerações Finais

Em uma nota final, observa-se a necessidade de evitar benefícios desproporcionais e o abuso da propriedade intelectual por determinados atores do mercado, já que tais práticas prejudicam a concorrência e o interesse público.

É fundamental a atuação incisiva do CADE, sob a ótica antitruste e resguardando as funções da propriedade intelectual, com ênfase ao atendimento do interesse público.

O sistema jurídico deve ser visto como um todo coerente, de forma que a proteção da propriedade intelectual, neste caso sob a forma da concessão de exclusividade de exploração da patente a uma empresa, deve ser analisada em alinhamento com a proteção de uma concorrência dinâmica e saudável, bem como com as finalidades constitucionais da propriedade intelectual.

O caso analisado coloca luzes, ainda, na perspectiva de amplitude dada a um direito de exclusividade. Fica claro que o direito patentário deve atender ao inventor e servir como forma de estímulo ao investimento das empresas em desenvolvimento e inovação, cobrindo, de forma proporcional e adequada, o escopo da inovação.

Eventual proteção excessiva ou abusiva, por outro lado, pode prejudicar a concorrência e deixar de lado o atendimento ao interesse público. Cabe aos juristas e reguladores a aplicação coerente de tais vetores principiológicos e da legislação vigente aos casos em concreto.

Cabe, por fim, aos legisladores, adaptar a legislação, na medida em que a sociedade e a tecnologia evoluem – cada vez mais rápido – , trazendo novos dispositivos para que se mantenha a proteção aos valores consagrados constitucionalmente.

Referências

BORGES BARBOSA, Denis. Tratado da propriedade intelectual. v1. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva e CASAGRANDE, Leonardo. Direito concorrencial: doutrina jurisprudência e legislação. São Paulo: Saraiva, 2016.

. Jurisprudência sobre PI do CADE. 2005. Disponível em: Htp://denisbarbosa.addr.com/. Acessado em 08 nov. 2016.

. Nota sobre a propriedade intelectual e a legislação, a prática e a jurisprudência brasileira em matéria de abuso de direitos e abuso de poder econômico. 2005. Disponível em: HYPERLdenisbarbosa.addr.com/. Acessado em 08 nov. 2016.

Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Eli Lilly é multada em R$ 36,6 milhões por abuso de direito de petição. 2015. Acesso em: 25.05.25. Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/eli-lilly-e-multada-em-r-36-6-milhoes-por-abuso-de-direito-de-peticao?utm_source=chatgpt.com

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