A RESSUREIÇÃO DIGITAL: Quais são os direitos que uma pessoa morta possui?
Marcos Wachowicz – Professor Titular da UFPR, Coordenador do GEDAI/UFPR.
Oscar Cidri – Mestrando do PPGD/UFPR, Pesquisador do GEDAI/UFPR
A tempos a utilização da tecnologia de Inteligência Artificial tem sido utilizada para gerar novas obras musicais de artistas falecidos, inclusive recriando digitalmente a imagem, a voz e as expressões corporais de celebridades do meio artístico.
Os artistas famosos, os cantores de sucesso, as celebridades e mesmo uma pessoa comum, após a morte tem resguardados direitos de personalidade em um aspecto objetivo, como o direito à honra, à imagem ou à privacidade.
A pessoa falecida tem direito à reputação, à imagem, à identidade, ao nome e à memória, sendo que aos familiares (em especial os herdeiros) cabe a guarda desses direitos de personalidade.
A Revista Forbes, apontou que das 13 celebridades falecidas mais bem pagas no ano de 2021, houve aumento na venda de suas obras, músicas e filmes, sendo que em alguns casos os ganhos chegaram a ser triplicados, alcançando mais de R$ 5,66 bilhões de reais.
Nas listas destes famosos mais rentáveis estão, músicos como Michael Jackson, Elvis Presley, Prince, Bob Marley, John Lennon, David Bowie, atores como Steve McQueen, Elizabeth Taylor, e celebridades como o jogador de golfe Arnold Presley chegando até mesmo ao renomado cientista Albert Einstein.
Agora no final de 2023, o que parecia impossível ocorreu, os Beatles lançaram uma nova canção, com o título “Now and Then”. Utilizando a tecnologia de inteligência artificial foi possível a ressureição digital da John Lennon, a partir de um antigo fonograma deixado a mais de 40 anos.
A ressureição digital de artistas seria a coisificação do homem?
Com o desenvolvimento da tecnologia de ressureição digital, é possível recriar digitalmente um artista já falecido, para sua inserção em uma nova interpretação ou em uma obra nova, como a exemplo de um filme ou de uma música.
A Ressurreição Digital de celebridades falecidas para muitos pode ser considerada uma coisificação do homem, por reduzir a imagem e a memória da pessoa a um produto, um programa ou até mesmo de um avatar em um mundo virtual.
Isso ocorre porque, muitas vezes, a utilização da imagem de pessoas falecidas é feita com o objetivo de lucro e promoção mercadológica, sem levar em consideração a dignidade da pessoa humana e a memória do falecido, ou ainda, as obras intelectuais por eles deixadas.
Dessa forma, a ressurreição digital vista pelo lado da apropriação digital da imagem, da voz e mesmo da própria interpretação do artista, pode ser vista como uma forma de objetificação do ser humano, transformando-o em um objeto de consumo para a indústria do entretenimento.
Existe alguma legislação específica que regulamente a disposição da imagem de pessoas falecidas e que possam protege-las mesmo após sua morte?
O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a tutela dos direitos de personalidade post mortem de pessoas de reputação notória, tendo os familiares o direito buscar em juízo os danos morais e materiais contra os agressores que realizaram a avatarização ou ressureição digital.
No REsp 521.697/RJ, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a tutela dos direitos de personalidade post mortem de pessoas de reputação notória, tendo os familiares o direito postulatório a danos morais e materiais contra os agressores.
Os direitos da personalidade, no qual o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade, mas nem por isso, deixa de merecer proteção, como se fossem coisas de ninguém. Isso se deve ao fato de que a honra e a imagem permanecem perenemente lembradas por meio das memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida.
No entanto, não há uma legislação específica que regulamente a disposição da imagem de pessoas falecidas.
O uso da imagem ou da voz de pessoa falecida, mediante a utilização de técnicas de Inteligência Artificial, para construção de novas performances artísticas ou publicitárias, operando a “ressurreição digital”, é um tipo de situação que precisa ser analisada com muita cautela, tendo em vista a importância de se resguardar primeiramente os direitos de personalidade.
Portanto, a questão ainda é objeto de discussão e análise no âmbito jurídico.
Contudo, mesmo com a inexistência de uma legislação específica que regulamente a disposição da imagem de pessoas falecidas, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a tutela dos direitos de personalidade post mortem de pessoas de reputação notória, tendo os familiares o direito postulatório a danos morais e materiais contra os agressores.
Desta forma, a questão da avatarização de pessoas falecidas envolve uma série de dilemas éticos e jurídicos, que precisam ser analisados caso a caso e com cuidado. É importante que sejam estabelecidos limites para a utilização da imagem e da memória de pessoas falecidas, de forma a garantir a proteção aos direitos de personalidade no decurso do tempo.
Foi o que ocorreu como ator Paul Walker que antes de completar as filmagens de uma das maiores franquias de sucesso, o longa metragem Velozes e Furiosos 7, veio a falecer num acidente de carro, fato que a princípio inviabilizaria a estreia do filme.
Contudo, com a técnica e uso de aplicativos de Inteligência Artificial, realizaram a ressurreição digital do seu personagem “Brian O’Conner”, e assim completar as cenas faltantes com um avatar que interpretou o papel e assim possibilitar a conclusão do filme sem que houvesse maiores esclarecimentos do estúdio sobre os termos técnicos ou econômicos dessa ressurreição.
É por isso que a preocupação com o uso da tecnologia de ressureição digital tem chamado a atenção na Industria do entretenimento, a ponto de cláusulas contratuais serem criadas em testamentos de algumas celebridades com disposições específicas sobre o uso dos direitos pós mortem.
Foi o que ocorreu em 2015, com o ator Robin Williams, protagonista de filmes como, homem bicentenário, a Sociedade dos Poetas Mortos, Uma Babá Quase Perfeita e Gênio Indomável, como noticiou o Jornal El Pais o seu pioneirismo ao deixar em testamento uma blindagem ao uso dos direitos de seu nome, sua assinatura, sua imagem e sua fotografia após sua morte, ao ceder tais direitos apenas à fundação filantrópica Windfall por 25 anos, que com exclusividade total está autorizada o uso, e a ninguém mais.
O ator demonstrou por meio da disposição testamentária que era consciente do muito que valia a imagem que tinha criado como ator, intérprete e humorista que foi ao longo de sua carreira, inclusive porque em vida travou uma disputa com os estúdios Disney quando, sem sua permissão, utilizaram a voz que Williams tinha criado para o gênio de Alladin em outros produtos relacionados com o desenho animado.
A Disney, a qual não poderia livremente utilizar a voz do ator para promove produtos de merchandising de varejo de produtos relacionados com o filme, tudo com meios de seduzir o público a comprar um determinado objeto, ou participar de uma promoção, sorteio ou brinde. A demanda culminou com o um acordo entre as partes, tendo recebido o autor uma obra de Picasso de cerca de um milhão de euros como desculpa pelo uso não autorizado de sua voz.
Afinal a voz da pessoa morta está protegida por direito autoral?
A utilização da imagem e da voz de pessoas falecidas, por meio de técnicas de Inteligência Artificial, para a criação de novas performances artísticas ou publicitárias, operando a “ressurreição digital” do falecido já é tecnicamente possível e está ganhando espaço face o barateamento do uso da IA na criação de avatares digitais e holográficos.
A proteção da voz de pessoas falecidas pela Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) prevê a proteção dos direitos patrimoniais e morais dos autores de obras intelectuais, incluindo a proteção da voz.
No entanto, é importante ressaltar que os direitos autorais são transferidos aos herdeiros do autor após a sua morte, e que a proteção dos direitos morais é inalienável e irrenunciável, ou seja, não pode ser transferida ou renunciada.
Assim a voz de uma pessoa falecida pode ser protegida por direito autoral, desde que tenha sido utilizada em uma obra intelectual protegida pela lei, ou seja, a reutilização da voz de Elvis Presley gravada anteriormente, ou utilização da voz de Elis Regina que já exista num fonograma e que seja remixado numa outra mídia, áudio visual ou propaganda.
Caso que gerou polêmica foi a propaganda na qual houve a Ressureição Digital da Cantora Elis Regina que faz um dueto com sua própria filha.
Mas o que diz a Lei de Direitos Autorais sobre a interpretação do artista?
Quando se utiliza o timbre de voz, forma de interpretação ou até a maneira de inflexão característica de uma pessoa, como é o caso da utilização de aplicativos de Inteligência Digital que imitam com precisão quase absoluta a voz de uma pessoa falecida para a criação de novas obras, como se observa das técnicas de ressureição digital, poderão surgir novas questões éticas e jurídicas da aplicação ou não do Direito Autoral, cujas normas aqui também devem ser analisadas com cautela caso a caso.
A primeira delas é a de que nenhum artista interprete possui direitos autorais sobre a sua interpretação. Isto se aplica ao cantor de um refrão, ao músico executante de uma partitura, ao ator ou ao locutor de uma poesia recitada.
A interpretação não cria uma obra derivada, a poesia recitada pelo ator com sua voz não é uma transformação da obra primígena (poesia), mas antes nascem simultaneamente e são indissociáveis.
Centenas de artistas tentam todos os dias tocar uma guitarra como David Gilmour do Pink Floyd, cantar como Frank Sinatra, dançar como Michael Jackson, todos podem fazer desde a imitação mais servil até a inspiração mais elevada, sem que isso represente plágio ou cópia servil.
Assim é temerário e inadequado atribuir direitos de exclusivo a uma interpretação criada por IA de uma obra ou sobre o modo de se executar uma música.
A forma que um cantor expressar o seu talento, cantando está protegida pelo Direito Autoral no objeto, no suporte físico em que ela está fixada, gravada e guardada, seja num disco, DVD, CD, MP4, fonograma analógico ou digital, independente do suporte em que esteja inserida a sua performance artística.
A utilização de aplicativos de Inteligência artificial para recriar a voz de cantores ou locutores falecidos ou não, sem a utilização de obras preexistentes, não se pode afirmar que se trata de um plágio ou até de uma cópia servil de uma interpretação ou execução, pois copiam-se obras e não interpretações.
Referências:
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade. 2 ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. ________. Os direitos da personalidade. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Direito além da vida: um ensaio sobre os direitos da personalidade post mortem. 1ª ed. São Paulo: LTr, 2009.
Notícias:
Leia mais em: https://gedai.ufpr.br/ressureicao-digital-e-o-direito-de-imagem-caso-star-wars/
Leia mais em: https://forbes.com.br/forbeslife/2021/11/as-13-celebridades-mortas-mais-bem-pagas-de-2021/
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Leia mais em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-37639325
Leia mais em: https://forbes.com.br/forbeslife/2021/11/as-13-celebridades-mortas-mais-bem-pagas-de-2021/
Leia mais em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/31/cultura/1427813184_083287.html
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Vídeos:
https://www.youtube.com/watch?v=aMl54-kqphE
https://www.youtube.com/watch?v=oWPUXoP1b60
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