Cinquenta tons de cinza: o Direito Autoral no grafitti e o caso Dória
Bibiana Biscaia Virtuoso
“A arte é a expressão dos sistemas de vida e pensamento de indivíduos, sociedades e épocas, contextualizados em momento e lugar. Nesse sentido, a urbe é a expressão de concepções, crenças, angústias, alegrias, vitorias, derrotas e conflitos daqueles que a habitam. Assim, é possível ler na cidade a história de vida e a visão de mundo de cada um e da coletividade”. (Elisabeth Seraphim Prosser)
A ORIGEM
Nascido na década de 70, o Graffiti é uma manifestação cultural de grupos marginalizados da sociedade. A sua origem está atrelada aos jovens pobres que viviam nas periferias das grandes cidades. Ele se apresenta como uma forma de liberdade de expressão pelos grupos menos favorecidos. É o meio para que eles possam expor sua visão de mundo e criticar a sociedade.
Originário dos Estados Unidos, o Graffiti se espalhou pelas maiores metrópoles do mundo, tornando-se um fenômeno recorrente nos grandes espaços urbanos. Wynwood, MALBA e até mesmo o que restou do Muro de Berlim são considerados museus a céu aberto, cuja principal arte é o Grafitti.
Apesar de despontar cada vez mais como uma arte original, políticas repressoras vêm aparecendo com mais frequência, criminalizando cada vez mais o esta arte. O exemplo mais recente é o que ocorreu na cidade de São Paulo. Considerada um dos maiores museus a céu aberto no mundo, a metrópole é referência na arte do Graffiti no Brasil. Locais como o Beco do Batman, a Avenida 23 de Maio e Avenida Nove de Julho são alguns dos pontos considerados como verdadeiras galerias de arte.
A POLÊMICA
Em janeiro deste ano, o prefeito João Doria mandou apagar os grafittis existentes na Avenida 23 de maio, sob a alegação de que as obras estariam pichadas. Usando tinta de cor cinza, diversos murais foram apagados.
Alvo de críticas e protestos, o prefeito anunciou um projeto que prevê remunerar os artistas, bem como pagar suas tintas. Seria uma espécie de museu a céu aberto, espalhado pela cidade. Apesar de o projeto ser considerado positivo, alguns grafiteiros acreditam que ter um lugar próprio para pintar seria uma restrição da liberdade, descaracterizando a essência deste tipo de arte.
O prefeito João Dória poderia ter destruído as obras? Como a lei de direitos autorais trata o Graffiti? Os artistas podem reivindicar seus direitos ou devem se abster dos mesmos por terem realizado a obra de forma ilegal?
A TUTELA JURÍDICA DO DIREITO AUTORAL
Celia Lerman, em seu artigo Protecting Artistic Vandalism: Graffiti and Copyright Law[1], defende que os artistas possuem direitos autorais sobre suas obras, mas de forma limitada. Os direitos autorais são neutros no que tange a forma como os trabalhos são criados.
Primeiramente, o Graffiti deve possuir os requisitos mínimos para ser tutelado pelos direitos autorais. Isso significa que ele deve ser um trabalho original, fixado em um meio de expressão tangível. Desta forma, nem todo trabalho é tutelado pela lei de direitos autorais. Simples assinaturas ou frases comuns não se enquadram nos requisitos mínimos, tais como “vote em”, mesmo se o visual tiver traços artísticos.
Contudo, como dito anteriormente, o copyright, no caso do Graffiti, é limitado. Não há uma proteção da forma física, mas sim da parte intangível. O artista não pode clamar os direitos se o meio utilizado não foi permitido. Os grafiteiros não podem pedir o direito de preservar a obra em sua condição original, tanto que o dono do local – muro, parede, meio pelo qual a obra foi fixada – pode remover, destruir e até vender a obra se assim desejar, além de poder se defender de outras pessoas que queiram destruir, pintar ou remover a obra de sua propriedade.
Os artistas não possuem direitos em relação aos proprietários do local. Todavia, isto não se aplica ao caso de terceiros. Os grafiteiros podem defender sua obra da reprodução sem permissão e de trabalhos derivados de suas obras.
De acordo com a doutrina do Unclean Hands (mãos sujas, na tradução livre), a tutela dos direitos autorais sobre a obra é excluída no momento em que a mesma fere os direitos de outrem. No caso do Graffiti, quem tem os direitos violados é o proprietário do imóvel. Desta forma, os artistas perdem o poder de clamar direitos perante os donos dos locais grafitados. Contudo, a ilegalidade de suas obras não atinge a terceiros, de forma que – em relação a estes – os artistas podem se defender.
Para além da lei de direitos autorais e da doutrina do Unclean Hands, nos Estados Unidos há o chamado Copyright Act and the Visual Artists Rights Act, conhecido como VARA. O VARA defende o artista ao garantir os direitos de atribuição (direitos que vão além da forma física do trabalho), os direitos de integridade (abrange a questão da honra e reputação, muito importantes no mundo do Graffiti, além da efemeridade das obras) e direitos contra a destruição.
A INTERPRETAÇÃO DA LEI E A JURISPRUDÊNCIA
No Brasil, a lei que tutela os direitos autorais é a Lei 9.610 de 1998[2]. Em seu artigo 7, inciso VIII, garante-se a tutela dos direitos autorais de obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética. O Graffiti encontra-se nesta classificação como desenho.
A Lei 9.605 de 1998[3], em seu artigo 65, criminalizava a realização do Graffiti, impondo detenções que variavam entre três meses e um ano. Contudo, a Lei 12.408 de 2011[4] veio com uma reformulação deste artigo 65, proibindo a venda de tinta spray para menores de 18 anos e descriminalizando o Graffiti nos casos em que o objetivo seja a valorização do patrimônio publico ou privado, desde que haja o consentimento do proprietário ou órgão responsável.
O Recurso Especial nº 951.521, de relatoria do ministro Aldir Passarinho Junior, reforça a noção de tutela dos direitos autorais das obras grafitadas.
CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS. DIREITOSAUTORAIS. OBRA EM LOGRADOURO PÚBLICO. REPRODUÇÃO SEMAUTORIZAÇÃO. CABIMENTO.
I. Constatada a inexistência de contradição ou omissão no aresto estadual, não se vislumbra violação ao art. 535, I, do CPC, nem a suposta nulidade alegada pela parte, que apenas teve seus interesses contrariados.
II. A obra de arte colocada em logradouro da cidade, que integra o patrimônio público, gera direitos morais e materiais para o seu autor quando utilizado indevidamente foto sua para ilustrar produto comercializado por terceiro, que sequer possui vinculação com área turística ou cultural.
III. Juros moratórios devidos em 6% (seis por cento) ao ano, a partir da citação, observando-se o limite prescrito nos arts. 1.062 e 1.063 do Código Civil/1916 até a entrada em vigor do novo Código, quando, então, submeter-se-á à regra contida no art. 406 deste último diploma, a qual, de acordo com precedente da Corte Especial, corresponde à Taxa Selic, ressalvando-se a não-incidência de correção monetária, pois é fator que já compõe a referida taxa.
IV. Havendo pedido de indenização por danos morais e por danos materiais, o acolhimento de um deles, com a rejeição do outro, configura sucumbência recíproca. Precedentes.
V. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, parcialmente provido[5].
Da mesma forma, a apelação cível de nº 0215338-75.2010.8.26.0100, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, reforça:
EMENTA DIREITO AUTORAL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS Improcedência – Obra realizada em logradouro público Reprodução para fins de divulgação de veículo comercialização por terceiro Norma do artigo 48, da Lei nº 9.610/98, que não afasta a responsabilidade pela reprodução indevida (para fins lucrativos ou comerciais) Direito moral dos autores de terem seus nomes ou sinal indicado Direito patrimonial que reside no fato de não ter sido consentida a divulgação das obras para fins comerciais Indenização por dano material e moral devida – Danos morais Ocorrência – Arbitramento 20.000,00 (vinte mil reais) para cada requerente conforme pleiteado Correção monetaria a partir do arbitramento (Súmula nº 362 do STJ), acrescidos de juros legais de mora a partir da data do evento danoso, a teor da Súmula 54, do STJ Montante arbitrado que se encontra em consonância com a regra do artigo 944 do Código Civil Danos materiais Devidos Fixação em conformidade com precedentes desta Egrégia Corte – Sentença reformada – Recurso provido[6].
De acordo com a decisão, a obra artística, representada pelo Graffiti é protegida pela lei de direitos autorais, de modo que contém uma criação artística com inspiração resultante do talento do criador, possuindo uma imagem diferenciada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos autorais sobre os trabalhos de Graffiti ainda apresentam alguns obstáculos para sua concretização. Com as políticas repressoras mais recorrentes, muitos artistas se sentem intimidados a assinar suas obras. Assim, torna-se mais difícil garantir seus direitos sobre o trabalho.
As soluções possíveis para os casos de anonimato variam entre perguntas na comunidade de grafiteiros e analise do Graffiti. Os artistas são conhecidos em seu meio, de forma que há a possibilidade de perguntar na comunidade local quem é o autor da obra em questão. Caso não seja possível (muitos se sentem intimidados), pode-se ainda fazer uma análise da obra. A partir do estilo e dos traços, é possível deduzir quem é o responsável pela arte, comparando-a com outros desenhos.
O Graffiti pode não agradar a todos, sempre há pessoas que o considerem uma forma de sujar a cidade. Porém, sua criação e objetivo não podem ser deixados de lado pelo universo jurídico. O artista que o cria pode não ter controle sobre a forma física da obra, afinal ela fica vulnerável a intempéries e às ações do proprietário do imóvel (nos casos de obras feitas sem autorização). Contudo, o artista pode se valer da lei de Direitos Autorais para reivindicar a autoria e o que decorre dela, tal como a proteção contra a reprodução não autorizada por terceiros.
A Lei de Direitos Autorais é neutra no que diz respeito à origem do Graffiti. Não é porque a obra foi feita de maneira ilegal que ela pode ser utilizada de forma que contrarie o artista ou que viole seus direitos como autor. Os direitos de criação do trabalho são tutelados por lei, mesmo que a obra física venha a ser destruída.
O Graffiti é uma arte das ruas, do espaço urbano. Os seus autores, em grande parte anônimos, constroem uma relação com o espaço do dia a dia, com os locais da cidade por onde passam.
O Graffiti insere-se nesta relação, sendo a forma encontrada para que eles expressem suas angustias, alegrias, seu modo de encarar o mundo.
É uma arte que, mesmo criticada por muitos, deve ser considerada e respeitada, assim como seus criadores. Não se pode apenas criminalizar o Graffiti: sua ilegalidade não é requisito suficiente para deixar de lado os direitos sobre sua criação.
[1] LERMAN, Celia. Protecting Artistic Vandalism: Graffiti and Copyright Law. In.: NYU Journal of Intellectual Property and Entertainment Law (JIPEL). Disponível em: http://jipel.law.nyu.edu/2013/04/protecting-artistic-vandalism-graffiti-and-copyright-law/. Acesso em: 23 mai 2014.
[2] BRASIL. Lei 9.610 de 1998, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm. Acesso em: 25 mai 2014.
[3] BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em: 25 mai 2014.
[4] BRASIL. Lei nº 12.408, de 25 de maio de 2011. Altera o art. 65 da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, para descriminalizar o ato de grafitar, e dispõe sobre a proibição de comercialização de tintas em embalagens do tipo aerossol a menores de 18 (dezoito) anos. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12408.htm. Acesso em: 25 mai 2014.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 951521. Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior. Diário Oficial da União. Brasília, 11 maio 2011.
[6] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 0215338-75.2010.8.26.0100. Diário Oficial da União. São Paulo.