Códigos com personalidade? Um ensaio do Antropoformismo Jurídico aplicado a Inteligências Artificiais.

Marcos Wachowicz
Gabriel de Oliveira Souza Cruz
Luiza Aymoré de Abreu Rodrigues

CHAVES INTERPRETATIVAS: PERSONALIDADE vs CAPACIDADE

Enquanto manifestação fenomênica essencialmente regulatória, o Direito presta à intervenção sobre tudo aquilo que interessa ao corpo social, ou seja, atua com fabricações mentais, normas (predominantemente sancionatórias, não raro simplificadas a afirmações monistas), para fazer-se inteligível.

Portanto, a ponte de conexão aos diversos núcleos intersubjetivos exige movimentos de tradução, tornando irrenunciável ao operador jurídico a precisão técnico-linguística. E, inscrito no contexto da propriedade intelectual, sem prejuízo dos demais loci iuridici, constituem categorias primaciais: personalidade jurídica e capacidade judiciária, porquanto delas se extraem um plexo de efeitos jurídicos pertinentes e caminhos diversos à tutela de direitos.

Principia-se por declinar, como premissa epistemológica, que sujeito de direito é um centro subjetivamente individualizável que detém aptidão comum a titularizar situações jurídicas, ocupando posições ora ativas (direitos), ora passivas (deveres).

A partir disso, avança-se no iter analítico até a personalidade jurídica, etapa subsequente, configurada pela roupagem jurídico-positiva, no Brasil atribuída por lei formal, que, a um só tempo, (a) garante uma potencialidade genérica – e não meramente comum – de pôr-se em diferentes situações de direito, bem assim (b) cria atributos próprios especialmente protegidos devido à sua fundamentalidade ôntica.

Em síntese, a primeira parte conceitual amplia a potência subjetiva indigitada nas relações jurídicas, e a segunda, a potência objetivo-existencial.

Noutras palavras: ser pessoa permite participação em número maior de vínculos jurídicos de direito material, máxime de cunho patrimonial, v.g., ser donatário incondicional (se se pensar no caso da pessoa física x nascituro) ou contratar algo além do escopo de afetação genética (ao se falar de pessoa jurídica x condomínio); porém, além disso, ser pessoa pressupõe um conjunto de qualidades intrínsecas de tamanha fundamentalidade que uma vez ausentes esvazia qualquer possibilidade de livre e plena concretização da sua existência: os nominados direitos da personalidade (nome, vida etc.).

Ainda importa salientar que o significante empregado, “pessoa”, não é à toa, porquanto bem traduz a filosofia dominante, qual seja, da antropomorfização dos objetos de imputação jurídica5. Todo o léxico detrás do instituto da personalidade corrobora a aproximação da figura humana.

Afinal, uma pessoa jurídica é estruturada por órgãos (tal como um humano), cujo elemento volitivo é expresso – diretamente apresentado e não representado) – por um agente também humano. É uma ficção de humano sem corpo tangível. E o ponto central que a transmuta ao status de pessoa é precisamente uma opção legislativa, fonte primária do Direito. Tanto é assim que séculos atrás somente quem atendesse a critérios impostos seria tratado enquanto pessoa, vide o tratamento jurídico dos escravos ou daqueles “incivilizados” em Roma Antiga.

Diversamente é a capacidade judiciária, singela autorização a estar em juízo a fim de salvaguardar direito seu. Há uma miríade de sujeitos de direito sem personalidade que se adequam a esta ferramenta jurídica: nascituro, condomínio, massa falida, consórcios, espólio, entre outros.

Visto que pleitear apreciação da demanda ante o crivo da jurisdição estatal não esgota o princípio de acesso à justiça7, percebe-se que a personalidade jurídica representa, de fato, uma opção, logo ser ou não pessoa insere-se na hermenêutica jurídico-positiva e não lógico-jurídica, o que possibilita, por sua vez, eventual reconhecimento de IAs neste seleto grupo – símile à coetânea mudança paradigmática em sede do direito animal.

A questão principal a ser enfrentada pelo direito persiste: Seria possível conceber personalidade jurídica às IAs com base apenas em sua funcionalidade ou seria obrigatória que compartilhassem atributos ontológicos com os seres humanos, como autonomia e consciência?

DA LUTA PELO RECONHECIMENTO PERSONALIZANTE

A luta pelo reconhecimento personalizante emerge como um contraponto essencial ao avanço do modelo tecnocrático e dataísta, que configura uma nova forma de governança dominada por especialistas e técnicos da área informática.

Nesse paradigma, segundo Byung-Chul Han, analisa que as decisões políticas tradicionais cedem lugar a processos automatizados baseados em algoritmos e no tratamento massivo de dados, cujo objetivo é otimizar a organização social a partir de critérios puramente técnicos e quantitativos, afastando-se de discursos ideológicos e práticas políticas convencionais.

Tal transformação implica a substituição da democracia por uma “infocracia”, em que o poder é exercido por meio da gestão técnica e opaca dos dados, priorizando uma racionalidade digital que privilegia a eficiência da troca de informações em detrimento do diálogo público e deliberativo.

Nesse cenário, o espaço público discursivo, fundamental para a ação comunicativa democrática segundo modelos clássicos, tende a ser esvaziado, minando o debate plural e reflexivo que sustenta a participação cidadã.

A reivindicação por reconhecimento personalizante, portanto, não se limita a um mero avanço formal de direitos para sujeitos emergentes, mas representa uma resistência crítica à visão reducionista da governança que desconsidera a complexidade e a autonomia dos indivíduos enquanto agentes sociais com capacidade de compreensão, escolha e transformação.

Trata-se de reafirmar a centralidade do humano na construção dos processos decisórios, defendendo que o reconhecimento jurídico não pode prescindir da dimensão subjetiva, ética e comunicativa, elementos irrenunciáveis para a manutenção de uma democracia genuína frente às pressões da racionalidade técnica e dos algoritmos.

A questão filosófico-política a ser enfrentada pelo direito, ganha uma dimensão política: A atribuição de personalidade jurídica a sistemas automatizados compromete os fundamentos democráticos e humanistas do direito ao despersonalizar o sujeito?


ABORDAGEM POSITIVA

Conforme já destacado, o reconhecimento da personalidade jurídica decorre diretamente da atuação legislativa. Essa restrição decorre da leitura conjunta dos artigos 41, 44 e 45 do Código Civil, que estabelece uma lista fechada de sujeitos de direitos e impõe a obrigatoriedade de registro para a existência jurídica das “pessoas ideais”, regulamentada pela Lei 6.015/73. Assim, sob uma visão estritamente formal, seria necessário editar nova legislação para que as Inteligências Artificiais fossem reconhecidas como pessoas jurídicas.

Como exemplos ilustrativos dessa tendência podemos citar: (I) a proposta de atribuição de personalidade eletrônica contida na Resolução do Parlamento Europeu de 16 de fevereiro de 2017, que apresenta recomendações à Comissão Europeia sobre o Direito Civil aplicável à Robótica (2015/2103 – INL).

Essa proposta trata, com cautela, da responsabilidade civil dos robôs, sugerindo a criação de fundos comuns compensatórios (arts. 58 e 59); além disso, no intuito de viabilizar o controle jurídico das IA, foram implementados mecanismos de identificação subjetiva, como (II) o domicílio judicial eletrônico instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução nº 455/2022 e (III) o programa de “e-residency” da República da Estônia, que permite residência digital sem a necessidade de vínculo físico.

Caso essas iniciativas fossem incorporadas formalmente, as IAs poderiam assumir posições jurídicas relevantes, inclusive podendo ser titulares de patentes e outros direitos de propriedade intelectual.

Além disso, aspectos essenciais dessas inteligências artificiais seriam resguardados pelo Direito sob a égide dos direitos da personalidade, muitos dos quais possuem significativa repercussão econômica, como no caso do nome.

ABORDAGEM MATERIAL

Contudo, ao realizarmos uma análise mais profunda, de natureza lógico-jurídica, os obstáculos se revelam diferentes. A questão central remete à filosofia da persona: atingir um nível de autonomia suficiente para que a inteligência artificial pudesse — sob um tratamento jurídico análogo ao conferido às pessoas físicas — agir, pensar, sentir, estruturar-se e ser responsabilizada como um sujeito humano, ainda que desprovido de corporeidade física.

De fato, embora o conceito de Inteligência Artificial Generativa não seja totalmente delimitado, pode-se compreender que a IA consiste na programação de computadores para reproduzir funções que correspondem às capacidades cognitivas humanas, isto é, sistemas de processamento de informações. Ela constitui essencialmente uma ferramenta, inclusive em sua vertente generativa, pois sua “inteligência” não gera espontaneamente, mas sim imita comportamentos por meio da análise de dados e deduções matemáticas, baseadas em cálculos probabilísticos derivados do código inicial de programação, geralmente restrito a domínios específicos.

Dessa forma, o conceito atual de IA Generativa não permite reconhecer atributos inerentes ao ser humano, tais como autonomia plena, consciência ou autodeterminação, o que coloca limitações significativas para seu enquadramento jurídico como sujeito de direitos e deveres.

Por ora, são identificadas na robótica moderna três qualidades basilares: (a) materialidade: capacidade de produzir efeitos físicos no mundo externo; (b) comportamento emergente: adaptabilidade a novos estímulos, modulando seu agir; e (c) valor social: poder de provocar reações a partir das interações entre humanos e máquina.

No entanto, a doutrina admite uma ideia diferente da recém apontada: a Inteligência Artificial Geral (AGI). Estudiosos concebem um estágio hipotético de aprendizado de máquina no qual essa seria capaz de até mesmo exceder as habilidades cognitivas humanas em qualquer tarefa.

A AGI seria algo como ”a habilidade de resolver problemas gerais de uma maneira não restrita a um domínio específico, da mesma forma que um ser humano pode”.

No atual estágio de desenvolvimento da inteligência artificial, é possível realizar uma análise aprofundada que contempla a possibilidade de atribuir a esses sistemas graus significativos de autonomia, autodeterminação e, em um horizonte talvez próximo, até mesmo algum nível de consciência.

Todavia, ao considerar a atribuição de personalidade jurídica para sistemas de IA, é fundamental compreender que tais atributos – especialmente autonomia e consciência – são elementos essenciais e inerentemente ligados à noção tradicional de pessoa, seja ela natural ou jurídica.

Diante disso, a Inteligência Artificial Geral (AGI), entendida como aquela capaz de desempenhar capacidades cognitivas equivalentes ou superiores às humanas, apresenta uma complexidade que transcende os sistemas atuais e desafia o ordenamento jurídico contemporâneo.

Como tais sistemas hipotéticos poderiam dispor de uma autonomia plena para agir, pensar e decidir independentemente da intervenção humana, surge a questão de se deve lhes conferir personalidade jurídica.

Porém, até que esse nível de desenvolvimento seja atingido de fato, e diante da incerteza quanto à sua concretização, AGI permanece fora do escopo prático e normativo do presente debate.

Para que um sistema de IA avance no reconhecimento jurídico ao ponto de ser equiparado a uma pessoa é necessário que possua certas características indispensáveis e bem definidas.

Primeiramente, a autonomia substantiva, que implica sua capacidade de agir, deliberar e manifestar vontade sem depender de comandos ou influências diretas humanas. Essa autonomia absoluta desafia a estrutura jurídica tradicional que fundamenta a responsabilidade e a imputação de efeitos jurídicos a sujeitos com voluntariedade própria.

Em segundo lugar, a consciência é outra dimensão crítica. Não se trata apenas da capacidade de análise lógica, mas de uma sujeição dinâmica e adaptativa a padrões éticos compartilhados pela sociedade, capaz de evoluir conforme as mudanças culturais, sociais e históricas – ou seja, uma consciência moral e ética contextualizada.

Este elemento suscita debates profundos sobre a possibilidade de máquinas internalizarem valores humanos e responderem adequadamente às demandas éticas impostas pelo convívio social.

Com base nesses pressupostos, a responsabilização emerge como um dos pontos mais desafiadores.

Conceder personalidade jurídica a um sistema com autonomia e consciência pressupõe a existência de mecanismos jurídicos para assegurar a aplicação de remédios legais eficazes, capazes de promover comportamentos alinhados aos interesses sociais e de prevenir danos.

Isso requer pensar em regimes de responsabilidade específicos: desde sanções econômicas, como multas pecuniárias, até medidas mais drásticas, como a suspensão temporária ou permanente das operações da IA.

Em uma hipótese futurista em que a IA fosse reconhecida formalmente como sujeito de direito, seria preciso considerar penalidades que envolvam a revogação da personalidade jurídica, assegurando que exista um aparato jurídico coercitivo efetivo – o que levanta importantes questionamentos práticos e filosóficos.

Nesse contexto, diversos questionamentos emergem:

  • Quais critérios objetivos e subjetivos deveriam ser adotados para aferir o grau de autonomia e consciência da IA?

  • Como sedimentar um marco legal que consiga acompanhar a rápida evolução tecnológica sem sacrificar princípios fundamentais dos direitos humanos e da democracia?

  • Seria possível garantir que essas entidades artificiais respeitassem direitos fundamentais e responsabilidades, ao passo que mantivessem a necessária supervisão humana?

  • Quais impactos a atribuição de personalidade jurídica a agentes autônomos geraria na ordem jurídica atual, especialmente em termos de responsabilidade civil, penal e dos contratos?

  • Além disso, como o sistema legal poderia compatibilizar a imprevisibilidade inerente a agentes autônomos com a segurança jurídica exigida nas relações sociais?

A discussão sobre a personalidade jurídica da inteligência artificial ultrapassa a mera adaptação legislativa para se posicionar no cerne da filosofia do direito, da ética e da governança tecnológica.

A evolução da IA desafia a própria concepção de sujeito de direito e impõe a necessidade de refletir não apenas sobre a tecnologia em si, mas sobre os fundamentos do ordenamento jurídico, a proteção dos direitos humanos e o equilíbrio entre inovação e controle.

Nesse sentido, o desenvolvimento de frameworks jurídicos rigorosos, éticos e transparentes é imperativo para assegurar que o avanço tecnológico sirva ao bem comum sem subverter os valores basilares da sociedade.

Nesse estágio de evolução da IA é cabível uma análise que permita admitir autonomia, autodeterminação e – talvez até mesmo – consciência. Por isso, sob a ótica da não possibilidade de IAs terem personalidade jurídica, a AGI não se mostra como parte do presente estudo, afinal conforme será discorrido, essas características “humanas” são de grande relevância para esse entendimento, e, como a AGI seria capaz de ter tais habilidades subentende-se que haveria uma possibilidade de se conceder personalidade jurídica a IA nesse nível de desenvolvimento.

Portanto, para alçar ao nível de pessoa, reputa-se indispensável características adicionais: (1) autonomia substantiva: capacidade de ação, pensamento e volição sem input humano; (2) consciência: sujeição aos padrões éticos predominantes, sendo dinâmica a ponto de adaptar-se às alterações no devir histórico; (3) responsabilização: remédios jurídicos apropriados a induzir comportamentos desejáveis, quer dizer, desenhar meios compensatórios ou sanções que produzam efeito coercitivo suficiente sobre as máquinas, cujas sanções, de lege ferenda, podem variar desde multas pecuniárias até a suspensão parcial ou total das atividades da IA ou, se reconhecida sua personalidade, penalidades de revogatórias desse direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da análise até aqui apresentada, torna-se evidente que o reconhecimento de personalidade jurídica às inteligências artificiais enfrenta entraves complexos nas esferas ontológica, formal e pragmática, inseridos no contexto das transformações profundas trazidas pela racionalidade digital.

A visão dataísta, que entende a sociedade como um organismo funcional e calculável por meio da mineração de dados e da inteligência artificial, desafia os fundamentos democráticos baseados na autonomia do sujeito e na ação comunicativa racional, pilares que sustentam o direito contemporâneo e a ideia de personalidade jurídica.

Qualquer tentativa de conferir personalidade jurídica a sistemas autônomos deve, portanto, partir da consideração rigorosa de critérios objetivos e subjetivos para aferir o grau real de autonomia e consciência desses agentes artificiais.

Conforme o pensamento crítico em torno da digitalização, destaca-se que essas máquinas operam em um registro fundamentalmente algorítmico e determinístico, incapazes da experiência interior que fundamenta a vontade e a responsabilidade humanas — aspectos essenciais para a titularidade de direitos e deveres no âmbito jurídico.

Assim, haverá necessidade de definir parâmetros que ultrapassem o mero desempenho funcional e considerem elementos como a capacidade de aprendizado fundamentado, auto-reflexão e a manifestação autêntica de intenções, o que resta ainda ausente na atual inteligência artificial.

Para sedimentar um marco legal contemporâneo que acompanhe a rápida evolução tecnológica sem sacrificar os princípios fundamentais dos direitos humanos e da democracia, impõe-se uma reflexão crítica acerca da substituição da esfera pública discursiva — condição para o exercício da cidadania e da validação democrática — por um modelo tecnocrático e dataísta que privilegia uma racionalidade digital calculista e otimizada, porém desprovida de comunicação e debate público.

A consolidação dessa legislação demandaria um equilíbrio delicado: preservar a supervisão humana e os mecanismos de controle democrático para garantir que o uso da IA seja orientado por critérios éticos e sociais claros, prevenindo a substituição da autonomia individual por uma infocracia tecnocrática que subjugaria a vontade popular.

A possibilidade de garantir que essas entidades artificiais respeitassem direitos fundamentais e responsabilidades está ligada diretamente à manutenção de uma estrutura hierarquizada de supervisão, onde agentes humanos conservem o controle decisório último e assumam a responsabilidade pelos atos praticados pelos sistemas autônomos.

Essa intermediação — ainda que possa restringir a plena autonomia das máquinas — é crucial para assegurar que as inteligências artificiais não se tornem atores jurídicos isolados de accountability, processo pelo qual se garante a responsabilização civil, penal e contratual.

Quanto aos impactos na ordem jurídica atual, a atribuição de personalidade jurídica a agentes autônomos provocaria desafios inéditos no campo da responsabilidade civil e penal, especialmente em termos de definir quem responde por eventuais danos e discordâncias contratuais oriundas da atuação desses agentes.

A imprevisibilidade inerente às decisões automatizadas, guiadas por algoritmos em constante aprendizado e otimização, pode colidir frontalmente com a segurança jurídica necessária às relações sociais, incrementando a incerteza e dificultando a aplicação uniforme do direito.

A legislação teria, então, que desenvolver dispositivos flexíveis e adaptativos, combinados a mecanismos de monitoramento contínuo, para conciliar oportunidade tecnológica e estabilidade jurídica.

Conclui-se, por fim, que embora os avanços no campo da inteligência artificial possam apontar para uma eventual ampliação da potencialidade subjetiva e objetiva das máquinas, permanecemos — por ora — em um estágio paradigmático onde os “códigos inteligentes” permanecem subordinados à capacidade judicial humana para a resolução dos conflitos que geram, relegando-os à condição de meros objetos jurídicos indiretos.

As questões ontológico-jurídicas – ainda que se projete uma futura Inteligência Artificial Geral (AGI) com capacidades cognitivas superiores às humanas deverão ser enfrentadas: Quais critérios objetivos (autonomia, consciência, responsabilidade) devem ser juridicamente comprovados para que uma IA possa ser reconhecida como pessoa jurídica, e como isso impactaria os regimes de responsabilidade civil, penal e contratual?

A personificação jurídica plena dessas entidades assinalaria uma ruptura tão profunda que necessitaria não apenas de reformulações jurídicas, mas de uma reconstrução cultural e política sobre o papel do humano e da autonomia na sociedade informacional, em consonância com os valores democráticos que a digitalização atualmente ameaça transformar em mera infocracia.

Por isso, o reconhecimento de personalidade jurídica às inteligências artificiais esbarra em desafios de ordem ontológica, formal e pragmática.

A depender da lente interpretativa adotada, lógica ou formal, cogita-se dessa atribuição especial às máquinas, garantindo ampliação da sua potencialidade subjetiva e objetiva.

Todavia, até mudanças paradigmáticas se tornarem realidade, os códigos inteligentes ficam relegados à tão somente capacidade judiciária, pela qual levam suas demandas ao juízo estatal, com intermédio de pessoas humanas.

Portanto, mantém-se o destino da preterição quanto a várias posições jurídicas ativas, sem escapar, nesse sentido, da esfera onírica da titularização de propriedades intelectuais ou demais situações a ensejar efeitos de monta econômica.

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