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Ghost-Writer: uma breve análise a partir do caso Bruna Surfistinha

Raquel Pacheco, mais conhecida como Bruna Surfistinha, ganhou fama ao lançar o livro “O Doce Veneno do Escorpião”, narrando as suas histórias como garota de programa. Lançado em 2005, vendeu mais de milhares de cópias e foi publicado em vários países.

Bibiana Virtuoso e Natália Alves Graton

 

Raquel Pacheco, mais conhecida como Bruna Surfistinha, ganhou fama ao lançar o livro “O Doce Veneno do Escorpião”, narrando as suas histórias como garota de programa. Lançado em 2005, vendeu mais de milhares de cópias e foi publicado em vários países.

O livro em questão, no entanto, não foi redigido pela própria personagem, mas sim por um Ghost-writer, um escritor contratado para elaborar a obra, posteriormente, alienando-a à Raquel Pacheco, que ficou conhecida como a autora do referido livro.

Contudo, após o sucesso de vendas no Brasil e no exterior, além de um filme, o escritor Jorge Roberto Tarquini entrou com processo contra Raquel e a Editora Original, responsável pela publicação do livro, alegando que ele era o autor da obra. Tarquini exigia o reconhecimento como o único autor, além de uma reparação de danos decorrentes da violação dos direitos patrimoniais e morais do autor.

O processo foi julgado improcedente em primeira instância, sendo a sentença confirmada em sede de recurso pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Desta decisão, o escritor interpôs Recurso Especial (REsp nº 1.387.242), o qual foi negado provimento pelo Superior Tribunal de Justiça.[1].

RESPONSABILIDADE CIVIL. DIREITO AUTORAL. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DO “GHOST WRITER” (ESCRITOR FANTASMA). COMO ÚNICO E EXCLUSIVO AUTOR DA OBRA-LITERÁRIA “DOCE VENENO DO ESCORPIÃO”. OBRIGAÇÃO DE FAZER. RESSARCIMENTO POR DANOS PATRIMONIAIS E MORAIS. IMPOSSIBILIDADE POR AUSÊNCIA DE CRIAÇÃO E FALTA DE PREVISÃO LEGAL. ANÁLISE DO CONTRATO FIRMANDO ENTRE APELANTE E A APELADA EDITORA. PRELIMINARES DE NULIDADE REJEITADAS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO.

 

O referido acórdão do Tribunal Superior afirmou que a personagem e as estórias são exclusivas de Raquel e são anteriores à criação do livro. Neste sentido, o escritor recorrente não teria criado a personagem e as estórias e consequentemente não poderia ser considerado autor da obra, indo de encontro com a definição do artigo 11[2] da Lei de Direitos Autorais.

Segundo o r. acórdão, o recorrente apenas redigiu o texto, fazendo as correções necessárias, de forma que não traduz o desenvolvimento literário que configura a autoria. Além disso, o escritor tinha ciência que havia sido contratado pela editora para prestar serviços como Ghost-writer, profissional especializado em redação de textos para terceiros abdicando da paternidade da obra.

Entendeu-se então que a Editora contratou o escritor para organizar os fatos e as estórias contadas por Raquel, havendo cessão total dos direitos autorais por parte deste, de forma que não se poderia falar em direitos autorais onde eles nunca existiram.

Questiona-se, no entanto, a legitimidade da celebração de tais contratos. Isto porque, é sabido que os direitos autorais se desdobram em duas faces: os direitos patrimoniais do autor (estes disponíveis e alienáveis) e os direitos morais (estes indisponíveis e inalienáveis, pois são personalíssimos).

 

DIREITOS MORAIS INALIENÁVEIS

Os contratos celebrados entre os Ghost-writers e as escritoras ou terceiros prevê a disponibilidade de ambos os direitos do autor, apesar da expressa proibição do artigo 27 da Lei de Direitos Autorais[3] quanto a irrenunciabilidade dos direitos morais Ademais, o mesmo diploma legal prevê que o autor tem direito imprescritível de reinvindicação de autoria da obra por ele criada.

No entanto, o entendimento da jurisprudência, como se verifica no presente caso, não coaduna com o disposto na Lei de Direitos Autorais, aceitando uma interpretação mais aberta ao permitir a celebração de tais contratos. A justificava para a permissividade está na autonomia da vontade das partes, as quais conscientemente anuíram com as cláusulas contratuais ao firmarem o instrumento.

Já na doutrina há quem afirme a nulidade destes contratos e a possibilidade do Ghost-writer reivindicar a obra a qualquer momento, tendo em vista a limitação legal da disponibilidade dos direitos personalíssimos.

A divergência traz questionamentos relevantes, entre os limites da autonomia privada e proteção conferida ao autor pelo ordenamento jurídico. A situação acaba por se equiparar ao plágio, onde também há a apropriação da obra por quem não é autor, contudo, neste caso não é considerado ilegal, segundo a jurisprudência recente.

 


[1]                  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.387.242. Rel. Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgado em: 03/02/2015.

[2]                  Art. 11, da LDA/98: “Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica”.

[3]                  Art. 27, da LDA/98: “Art. 27: Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis”.