O STF ao decidir pela utilização de “software livre” consolida uma política estratégica de incentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico para o Brasil
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em abril de 2015, julgou por unanimidade de votos improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.3059, ajuizada pelo partido Democratas (DEM) contra a Lei nº 11.871/2002 do Estado do Rio Grande do Sul, na qual se determinava expressamente a contratação preferencial de softwares livres pelos órgãos da administração direta e indireta.
Guilherme Crepaldi Formanski[1]
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em abril de 2015, julgou por unanimidade de votos improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.3059, ajuizada pelo partido Democratas (DEM) contra a Lei nº 11.871/2002 do Estado do Rio Grande do Sul, na qual se determinava expressamente a contratação preferencial de softwares livres pelos órgãos da administração direta e indireta.
As alegações de inconstitucionalidades formuladas pelo Partido Democratas
A ADI tramitava desde dezembro de 2002, quando o Governador do Estado do Rio Grande do Sul sancionou a lei estadual nº 11.871/02, aprovada pela Assembléia Legislativa daquele estado, que visava estabelecer – em linhas gerais – uma preferência pela utilização de softwares livres nos sistemas e equipamentos de informática no âmbito da administração pública gaúcha.
Na época, o então Partido da Frente Liberal (PFL) – hoje Democratas (DEM) – propôs uma ação direta de inconstitucionalidade da referida lei estadual (ADI 3059), sob a alegação de que esta violava os artigos 22, XXVII (compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação); 37, XXI (a administração pública obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sendo a contratação de obras, serviços, compra e alienações feita mediante licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes); e 61, § 1º, II, alínea b (é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre organização administrativa e matéria orçamentária) da Constituição Federal.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal
Em abril de 2004, o Supremo Tribunal Federal deferiu, por unanimidade, uma liminar que suspendeu os efeitos da Lei nº 11.871/02 – objeto desta ação direta de inconstitucionalidade. Na ocasião, o Ministro Ayres Britto, relator da ação, acolheu a tese da requerente que apontava três vícios de inconstitucionalidade presentes na lei gaúcha.
O Ministro Relator reconheceu: a invasão de competência privativa da União ao legislar sobre normas gerais de licitação; a limitação do âmbito de competição que a lei em questão criava ao dar preferência por softwares livres em detrimento de softwares proprietários; e a usurpação de competência privativa da administração pública do estado pelo Poder Legislativo Estadual.
Contudo, em sentido contrário foi o parecer do então Procurador-Geral da República Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, que em janeiro de 2005 concluiu que a lei gaúcha não padecia de qualquer dos vícios de inconstitucionalidade arguidos pela parte requerente.
Afirmou o Procurador-Geral da República – com base no próprio artigo 37, XXI da Constituição Federal e na Lei nº 8.666/93 que institui normas referentes a licitações e a contratos da administração pública – que a utilização de softwares livres pelo Poder Público não necessita de licitação, já que não se trata de obra, serviço, compra ou qualquer outra hipótese presente na legislação brasileira da qual se exija prévia licitação pública para contratação. Assim, não há que se falar em violação do que prescreve o artigo 37, XXI da Carta Magna, tampouco, em invasão de competência privativa da União (art. 22, XXVII, CF/88), pois a Lei nº 11.871/02 não versa sobre licitação, mas tão-somente autoriza o Poder Público gaúcho a utilizar softwares livres quando estes se apresentarem como mais viáveis para a demanda que se planeja atender.
“Seria possível até supor que a utilização de programas abertos estaria enquadrada na modalidade compra. Entretanto, pela própria definição da Lei de Licitações (art. 6o, III), compra é toda aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou parceladamente, então, como não há remuneração pelo uso dos softwares abertos, não se pode classificar a aquisição como compra.” Este foi o esclarecimento dado pelo Procurador-Geral da República ao afirmar em seu parecer que a aquisição e utilização do software livre não constituem uma compra por parte do Poder Público.
Quanto ao suposto vício de inconstitucionalidade referente à violação do artigo 61, § 1º, II, alínea b, que prescreve ser de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios, entendeu o Procurador-Geral da República que também deste vício não padece a referida lei estadual, pois o dito dispositivo constitucional versa expressamente sobre a administração de Territórios, não tendo, portanto, nenhuma aplicabilidade neste caso.
No fim do mês de outubro deste ano, iniciou-se no Supremo Tribunal Federal o julgamento do mérito desta ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3059) da qual é objeto a Lei nº 11.871/02 do Estado do Rio Grande do Sul.
O Ministro Relator Ayres Britto, ao contrário do que havia entendido em 2004 quando votou a favor da liminar que suspendia os efeitos da lei gaúcha, votou desta vez pela improcedência da ADI 3059, e pela cassação da liminar concedida em abril de 2004. O ministro afirmou que após estudar melhor a matéria, compreendeu que a lei estadual em questão não viola a Constituição Federal, mas sim complementa a legislação já existente.
Ayres Britto destacou que: “a administração pública dispõe do poder de ditar as características do produto ou serviço de que necessita, não estando compelida a aceitar qualquer condição unilateralmente imposta pelos detentores dos direitos autorais da matéria.”
O julgamento da ação foi suspenso após o pedido de vista do Ministro Luis Fux, que prolatou o seu voto pela improcedência da ADI.
O Voto-vista do Ministro Luiz Fux
O Ministro Luiz Fux, apresentou seu voto no sentido de acompanhar integralmente o relator. Entendendo que no caso dos autos não houve nenhum tipo de abuso por parte da lei do Estado do Rio Grande do Sul. Afirmando em seu voto que: “É que, como visto, a preferência pelo software livre não traduz qualquer vantagem para determinado produto. Na realidade, por software livre quer se designar apenas um arranjo contratual específico de licenciamento e não certo bem material ou imaterial”.
Assim fixa o entendimento de que a preferência legal para aquisição de softwares livres pela Administração não configura usurpação de competência legislativa exclusiva da União. E, portanto, existe competência legislativa suplementar dos estados-membros para dispor sobre licitações e contratos administrativos, “a despeito de a temática não constar expressamente no rol de competências legislativas concorrentes previstas no artigo 24, da Constituição Federal”.
A Decisão final do STF consolida uma política de incentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico.
O Supremo Tribunal Federal ao mensurar os argumentos do Partido Democratas quanto a existência de afronta ao princípio da separação dos poderes no caso da Lei nº 11.871/2002 do Estado do Rio Grande do Sul, na qual se determinava expressamente a contratação preferencial de softwares livres pelos órgãos da administração direta e indireta, houve por unanimidade rechaçar a tese, entendendo que não houve qualquer excesso do legislador estadual. Isto porque, o artigo 61, parágrafo 1º, da Constituição Federal, não estabelece nenhuma regra no sentido de que licitações e contratos administrativos devam partir de um ato do Poder Executivo. “Assim, essa matéria é plenamente suscetível de regramento por lei oriunda de projeto iniciado por qualquer dos membros do Poder Legislativo”, como bem avaliou o ministro Luiz Fux.
Destaca-se neste sentido que própria conclusão final do acórdão, “existem razões suficientes para que o legislador, em nome do postulado constitucional da eficiência, determine que os contratos de licenciamento de softwares livres serão preferencialmente adotados pela Administração Pública, em detrimento dos contratos de licenciamento proprietário. Noutras palavras, diante das suas vantagens prima facie, é razoável que o legislador imponha ao Administrador a primazia, abstrata, por esse modelo contratual de licenciamento. Em verdade, a preferência pelo software livre, longe de violar o princípio constitucional da eficiência, o promove e o prestigia, criando um ambiente normativo propício para a boa gestão dos recursos públicos”.
Como precisamente identificado pelo Min. Relator AYRES BRITTO, “o que subjaz à lei impugnada é, em rigor, uma política de incentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico regional”. De fato, ao permitir que os técnicos a serviço da Administração Pública tenham acesso aos códigos de programação utilizados nos softwares adquiridos, promove-se a expansão tecnológica do setor público brasileiro, que poderá estudar, adaptar, aperfeiçoar e redistribuir o programa, justamente na linha preconizada pelo art. 219 da Constituição da República, quando entoa que “o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar (…) a autonomia tecnológica do País”.
[1] Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR