
Do Panoptismo à Plataformização: Vigilância Algorítmica e o Novo Regime de Controle na Sociedade da Informação
Matheus Kauan Santos
Revisor/coautor: Alessandra Matos
Introdução
As transformações tecnológicas das últimas décadas reconfiguraram profundamente as formas de controle social. No lugar das estruturas tradicionais de vigilância disciplinar, marcadas por delimitações físicas e pela centralidade institucional, emerge um novo modelo de regulação difusa, automatizada e onipresente, operada por meio de plataformas digitais e algoritmos. Essa mutação do paradigma de vigilância pode ser compreendida a partir do deslocamento do panoptismo foucaultiano para o que se convencionou chamar de “plataformização” da sociedade. O presente artigo objetiva discutir esse deslocamento teórico e prático, apontando os desafios que decorrem da substituição do olhar disciplinador pelo cálculo algorítmico, e refletindo sobre os efeitos dessa nova lógica sobre a cultura digital, a autonomia informacional e os direitos fundamentais.
O panoptismo e a genealogia do controle disciplinar
Michel Foucault, em sua obra Vigiar e Punir, descreve o panóptico como uma figura arquitetônica ideal que sintetiza o funcionamento das sociedades disciplinares. Inspirado no projeto de prisão de Jeremy Bentham, o panóptico permite a vigília constante de indivíduos por um observador invisível, criando um estado permanente de auto-regulação. Para Foucault, trata-se de um mecanismo de poder que se internaliza nos sujeitos, promovendo não apenas a obediência, mas a produção de subjetividades moldadas pela norma.
Essa forma de poder disciplinar caracterizou os dispositivos institucionais modernos — prisões, escolas, fábricas, quartéis — nos quais a visibilidade dos corpos era condição para a eficácia do controle. O poder operava por meio da vigilância contínua e da normalização das condutas. Contudo, à medida que as relações sociais se deslocam para o ambiente digital e em rede, esse modelo espacializado de vigilância torna-se insuficiente para compreender os novos regimes de regulação social, mais fluidos, não territoriais e operados por dispositivos técnico-algorítmicos.
A lógica de poder passa a ser conduzida por “máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, redes de informação etc.) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc.) no objetivo de um estado de alienação independente do sentido da vida)” (HARDT; NEGRI, 2005).
Da sociedade disciplinar à sociedade de controle: o papel das plataformas
A transição do panoptismo à plataformização pode ser entendida a partir da noção de “sociedade de controle”, elaborada por Gilles Deleuze. Diferentemente das instituições fechadas das sociedades disciplinares, o controle nas sociedades contemporâneas opera de forma modulada, contínua e móvel, atravessando fluxos de dados e redes descentralizadas. O poder já não se exerce sobre corpos isolados em espaços delimitados, mas sobre perfis, padrões e probabilidades em ambientes digitais mediados por tecnologias.
Todos os aspectos da nossa rotina diária agora são “checados, monitorados, testados, avaliados, apreciados e julgados” (BAUMAN; LYON, 2017).
Esse novo arranjo, as plataformas digitais assumem o papel de instâncias normativas, mediando relações econômicas, culturais e sociais com base em lógicas algorítmicas e modelos de negócio centrados na coleta de dados.
Essa mudança marca uma ruptura significativa com os modelos de vigilância tradicionais. Se antes o olhar panóptico era centralizado e operava em instituições específicas, como prisões, escolas ou hospitais, agora ele se fragmenta e se distribui pelas redes digitais, integrando-se às próprias dinâmicas da vida cotidiana. O controle se dá por meio de incentivos sutis, gamificação, recomendações personalizadas e mecanismos de reputação, que conduzem comportamentos sem imposição direta. Assim, a vigilância se torna sedutora, integrada ao consumo e à performance do eu nas redes, fazendo com que os sujeitos se tornem, ao mesmo tempo, objetos e agentes do controle.
O conceito de plataformização, conforme discutido por autores como Nick Srnicek, refere-se não apenas à popularização de serviços digitais, mas à consolidação de um regime econômico-político baseado na extração e apropriação de dados como recurso estratégico, à intermediação automatizada de interações sociais e à consolidação de monopólios informacionais. E neste cenário “os cidadãos, os trabalhadores e os consumidores são agora mais visíveis para os vigilantes invisíveis que os submetem a um controle cada vez mais constante e imperceptível “ (PRIOR, 2011).
Empresas como Google, Meta e Amazon não apenas oferecem serviços e produtos; elas condicionam o modo como os sujeitos acessam informação, se comunicam e se posicionam socialmente. Essas plataformas operam como infraestruturas invisíveis que organizam, filtram e direcionam comportamentos, estabelecendo novos parâmetros normativos — muitas vezes sem o conhecimento ou consentimento consciente dos usuários.
O poder não atua mais por coerção explícita, mas por adesão voluntária e participação ativa nas dinâmicas digitais. A plataformização promove um tipo de governamentalidade algorítmica, em que os usuários colaboram com sua própria vigilância ao produzir continuamente dados que alimentam sistemas de previsão e controle. Essa lógica transforma ações cotidianas — curtir uma publicação, aceitar cookies, usar um GPS — em insumos para mecanismos de categorização, ranqueamento e exclusão. A normatização se dá, portanto, de forma difusa, automatizada e personalizada, reforçando desigualdades e limitando a autonomia dos indivíduos dentro de bolhas informacionais e regimes de visibilidade calculada.
Algoritmos e o capitalismo de vigilância
Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, descreve um novo regime econômico baseado na captura, análise e utilização de dados comportamentais para fins de previsão e modulação de condutas. Trata-se de um modelo que transforma a experiência humana em matéria-prima gratuita para processos comerciais, promovendo uma vigilância que não apenas observa, mas antecipa e influencia ações futuras.
Nesse contexto, os algoritmos operam como dispositivos de poder que classificam, hierarquizam e personalizam conteúdos de forma opaca e automatizada. A lógica algorítmica transforma-se em norma operativa, invisível e em grande medida inquestionável, produzindo efeitos normativos sobre os sujeitos. A personalização de experiências digitais — recomendação de conteúdos, direcionamento de anúncios, filtros de visibilidade —
converte-se em uma técnica de gestão preditiva da conduta, desafiando princípios de autonomia, privacidade e pluralidade.
A centralidade do dado comportamental cria um mercado de futuros humanos, no qual a atenção, o desejo e a decisão são monitorados, vendidos e manipulados. O capitalismo de vigilância e a economia do conhecimento, portanto, ampliam e reconfiguram a vigilância como instrumento econômico, aprofundando assimetrias de poder e limitando possibilidades de agência individual.
Cultura digital, autovigilância e psicopolítica
A cultura digital contemporânea promove formas de autovigilância que reforçam o regime de controle algorítmico. Byung-Chul Han, ao tratar da psicopolítica do neoliberalismo, aponta como os indivíduos, ao se exporem voluntariamente nas redes, participam ativamente do processo de vigilância, internalizando as lógicas de desempenho, transparência e autoexploração.
As dinâmicas das redes sociais baseiam-se na exposição contínua, na busca por validação e na curadoria da própria imagem sob a lógica das métricas e algoritmos. Essa exposição não é apenas voluntária, mas incentivada por um sistema que premia a visibilidade e penaliza a invisibilidade, moldando subjetividades orientadas à performance constante.
Além disso, a internet fornece ao usuário aquilo que ele deseja ver, e não necessariamente aquilo que existe em seu mundo e que ele pode realmente precisar. E para além disso, segundo ZUBOFF a internet se tornou imprescindível para a convivência social e que aquilo que precisamos dar em troca, para termos acesso a essa nova configuração da sociedade, destruirá a vida como a conhecemos hoje (ZUBOFF, 2021).
Nesse cenário, os sujeitos tornam-se empreendedores de si mesmos, ajustando suas condutas ao que é mais visível, rentável ou relevante, conforme os critérios da plataforma. O controle já não precisa ser imposto externamente: ele é interiorizado, naturalizado e desejado. A plataformização, nesse sentido, não apenas coleta dados, mas fabrica realidades e subjetividades, tensionando os limites entre liberdade e controle, autenticidade e conformismo.
Considerações finais
A transição do panoptismo à plataformização revela um deslocamento profundo nas formas de controle social, marcado pela centralidade dos dados, pela atuação de algoritmos e pelo poder normativo das plataformas digitais. O controle não se exerce mais pela coerção visível, mas pela mediação invisível das interações e pela gestão preditiva dos comportamentos. O poder circula de maneira descentralizada, modulando acessos, oportunidades e visibilidades a partir de lógicas automatizadas. As plataformas, ao mesmo tempo em que oferecem conveniência e conectividade, impõem formas sutis de vigilância e classificação, que naturalizam desigualdades e restringem a autonomia individual. Trata-se de um regime em que a liberdade aparente convive com um controle contínuo e invisível, ancorado na extração de dados e na antecipação de condutas.
A alfabetização digital crítica torna-se imprescindível para que os indivíduos possam compreender, questionar e resistir às dinâmicas de poder que permeiam o ambiente digital. Não basta apenas saber usar as ferramentas tecnológicas; é fundamental desenvolver um olhar atento sobre como as plataformas moldam comportamentos, influenciam decisões e perpetuam hierarquias. Assim, a formação crítica no campo digital emerge como condição essencial para ampliar a autodeterminação, promover a justiça social e mitigar os efeitos opacos do controle algorítmico
É urgente repensar os marcos regulatórios da Sociedade da Informação, com vistas à proteção dos direitos digitais, à promoção da transparência algorítmica e à construção de mecanismos democráticos de governança das plataformas. A compreensão crítica das novas formas de vigilância é condição necessária para a defesa da democracia e da diversidade cultural no ambiente digital. Não se trata apenas de resistir à vigilância, mas de imaginar outros modos de existência informacional que não sejam colonizados pelo cálculo e pela predição.
Referências:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,1987.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataforma. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversêções. São Paulo: Editora 34, 1992.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder.
Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
BAUMAN, Z; LYON, D. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar: 2017.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
HARDT, M; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.
PRIOR, H. Democracia deliberativa e vigilância electrônica: da participação ao panóptico cibernético. Estudos em Comunicação. COvilhã, n. 10, dez de 2011. Disponível em https://www.ec.ubi.pt/ec/10/pdf/EC10-2011Dez-20.pdf. Acesso em 1º de junho de 2025.