
Propriedade Intelectual e desenvolvimento sustentável: Um diálogo necessário para o futuro Global
Autor: Marcos Wachowicz
Breve qualificação: Professor de Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR e docente no Programa de Pós-Graduação – PPGD/UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa – Portugal. Professor da Cátedra de Propriedade Intelectual no Institute for Information, Telecommunication and Media Law – ITM da Universidade de Münster – ALEMANHA (2018/19). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial – GEDAI / UFPR vinculado ao CNPq.
Os ODS são diálogos necessários para o futuro Global
A relação entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a Propriedade Intelectual (PI) representa um tema de crescente relevância no cenário jurídico e econômico contemporâneo.
O Relatório Luz 2024 Brasil, elaborado por 47 organizações e 82 especialistas, mostra que a maioria das metas da Agenda 2030 ainda está distante de ser alcançada. Das 169 metas, apenas 7,73% avançaram satisfatoriamente; 34,52% tiveram progresso insuficiente; 23,8% retrocederam ou seguem em retrocesso; 25,59% estão estagnadas; 5,95% ameaçadas; e 2,38% carecem de dados para avaliação.
A Agenda 2030 da ONU é um plano de ação global que reúne 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas com foco na erradicação da pobreza e na promoção de uma vida digna a todos. Tudo isso sem comprometer a qualidade de vida das próximas gerações.
A COP30, a ser realizada em Belém (PA) em 2025, tem como principal objetivo avançar nas negociações climáticas internacionais e acompanhar o cumprimento do Acordo de Paris, buscando metas mais ambiciosas para limitar o aquecimento global. Paralelamente, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU estabelecem, como visto, metas globais que visam promover um futuro mais justo e sustentável, abrangendo áreas como erradicação da pobreza, combate à fome, igualdade de gênero e ação climática.
Com certeza, questões sobre proteção e exclusividades inerentes aos bens intelectuais, irão permear os debates.
Ao proteger as criações inovadoras, sejam tecnológicas, artísticas ou tradicionais, o sistema de PI desempenha um papel fundamental na promoção do avanço tecnológico necessário para a construção de um desenvolvimento sustentável.
A exclusividade conferida pela PI estimula o surgimento de novas soluções, tecnologias limpas e práticas sustentáveis que contribuem para o progresso social e econômico, especialmente em áreas estratégicas como indústria, infraestrutura e inovação.
Além disso, a transferência de tecnologia assegurada pelo marco legal internacional possibilita que diferentes países, em variados estágios de desenvolvimento, tenham acesso a conhecimentos protegidos, promovendo cooperação e reduzindo desigualdades que, de outra forma, poderiam comprometer os esforços globais pelos ODS.
O governo federal, por meio de órgãos como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e o MMA (Ministério do Meio Ambiente Mudança do Clima), desenvolve programas e ações para proteger o Conhecimento Tradicional (CT).
Nesse contexto, a proteção do CT e da biodiversidade emerge como uma dimensão essencial, já que valorizar e preservar saberes ancestrais fortalece o respeito à diversidade cultural e ambiental, objetivos intrinsecamente ligados à agenda global.
Ao mesmo tempo, o estímulo à inovação e à pesquisa em micro, pequenas e médias empresas, por meio da segurança jurídica proporcionada pela PI, fomenta o empreendedorismo e a inclusão social, contribuindo para a geração de empregos e o crescimento econômico sustentável.
No entanto, para que a Propriedade Intelectual exerça plenamente esse papel estratégico, é necessário que o sistema jurídico e institucional se adeque aos desafios contemporâneos, promovendo políticas públicas que conciliem a proteção justa e equilibrada dos direitos com o acesso equitativo às tecnologias, evitando exclusões e incentivando a cooperação.
A integração entre os direitos intelectuais e os objetivos de desenvolvimento sustentável demanda uma abordagem articulada, aqui elencar-se-á alguns pontos chaves, que são essenciais e indispensávei harmonizar proteção, inovação e inclusão, com vistas a construir um futuro socialmente justo, ambientalmente equilibrado e economicamente viável.
A conexão entre Propriedade Intelectual (PI) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) reside no papel da PI em incentivar inovação e proteger conhecimentos, essenciais para o desenvolvimento de tecnologias sustentáveis, aqui destacamos cinco pontos relevantes de conexão:
Inovação e Tecnologia como vetores do desenvolvimento sustentável
A inovação tecnológica figura como elemento fundamental para a promoção do desenvolvimento sustentável, configurando-se como ferramenta indispensável para o cumprimento das metas propostas pela Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, especialmente no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 9 (ODS 9), que orienta a construção de infraestruturas resilientes, o fomento à industrialização inclusiva e sustentável e o estímulo à inovação.
Sob o ponto de vista jurídico, o sistema de Propriedade Intelectual (PI) é central na consolidação desse processo.
Por meio da concessão de direitos exclusivos a inventores e criadores, abrangendo patentes, marcas, desenhos industriais e segredos comerciais, o ordenamento jurídico vigente cria incentivos para investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), favorecendo a geração de soluções tecnológicas alinhadas à sustentabilidade.
Estes direitos, respaldados tanto por legislações internas quanto por acordos internacionais, oferecem segurança jurídica aos agentes econômicos, conferindo previsibilidade na exploração e circulação das inovações tecnológicas.
No contexto do desenvolvimento sustentável, a proteção da PI deve ser integrada a políticas públicas voltadas ao aprimoramento tecnológico em setores estratégicos, tais como tecnologias limpas, eficiência energética e produção sustentável, alinhando-se às metas do ODS 9[2] e a aspectos correlatos dos demais objetivos de desenvolvimento.
O estudos revelam que a marca coletiva ainda é pouco utilizada como ferramenta para fortalecer e promover territórios criativos.[3] Com efeito, seu uso pode valorizar a produção local, fomentar a cooperação entre agentes econômicos e aumentar a competitividade. Além disso, marcas coletivas ajudam a reconhecer esses territórios como centros de inovação e cultura, impulsionando a economia criativa, atraindo investimentos e promovendo o turismo. Destaca-se aqui, a importância de políticas públicas e iniciativas privadas para incentivar a adoção dessa estratégia de valorização regional.
Ao fazer isso, a proteção jurídica atua não apenas como mecanismo preservador, mas também como fator catalisador da transformação socioeconômica comprometida com a responsabilidade ambiental.
O conceito de empreendedorismo, entendido como a capacidade de idealizar, coordenar e implementar projetos inovadores, especialmente aqueles que incorporam riscos, reforça a relevância da PI ao atribuir exclusividade temporária sobre criações e invenções, estimulando a competitividade e o crescimento econômico sustentável.
Essa combinação fortalece, inclusive, as micro, pequenas e médias empresas envolvidas em cadeias produtivas verdes, incentivando a geração de empregos e promovendo a inclusão social, conforme as prioridades nacionais delineadas para atender não somente ao ODS 9, mas também ao ODS 8, que enfatiza trabalho decente e crescimento econômico.
A tutela ofertada pela PI se manifesta em diversas modalidades complementares, a saber:
As patentes asseguram exclusividade na fabricação e comercialização de novas invenções e processos, fomentando o investimento em pesquisas aplicadas;
a proteção de marcas garante a identidade mercadológica de produtos inovadores;
o desenho industrial protege aspectos estéticos e funcionais que podem agregar valor sustentável;
e os segredos comerciais conservam a confidencialidade de conhecimentos técnicos não patenteados, preservando vantagens competitivas em ambientes empresariais dinâmicos.
Para que a PI cumpra seu papel no estímulo à inovação sustentável, é imprescindível a existência de um ambiente institucional sólido, com normativas claras, órgãos administrativos capacitados e mecanismos eficazes de cooperação internacional.
Tal estrutura é necessária para assegurar o equilíbrio entre a proteção dos direitos e o acesso às tecnologias, prevenindo práticas abusivas e promovendo a transferência tecnológica que apoie o desenvolvimento das infraestruturas e indústrias sustentáveis previstas pela Agenda 2030.
Cabe aqui, também ressaltar que, embora a proteção da PI seja instrumento valioso para o avanço tecnológico, sua aplicação deve ser harmonizada com os princípios da sustentabilidade. É fundamental desenvolver mecanismos que favoreçam a difusão equitativa do conhecimento e possibilitem o acesso amplo às tecnologias essenciais, contribuindo para um desenvolvimento inclusivo, a redução das desigualdades e a preservação ambiental, princípios norteadores do ODS 9 e da própria Agenda 2030.
Transferência de tecnologia e cooperação internacional no Direito Internacional da Propriedade Intelectual
A regulação internacional da propriedade intelectual ditada pela Organização Muncial da Propriedade Intelectual (OMPI), assume papel estratégico na mediação da transferência de tecnologia entre países, sobretudo no contexto das relações entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento, na chamada Agenda para o Desenvolvimento da OMPI.
Tal regulação é essencial para a promoção do desenvolvimento sustentável e para o enfrentamento das disparidades tecnológicas globais, tudo para buscar consonância com os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
A transferência de tecnologia envolve a disponibilização de conhecimento, técnicas e métodos produtivos a governos ou instituições receptoras, com vistas ao avanço econômico e social.
No plano jurídico, sua facilitação deve observar os direitos conferidos pela propriedade intelectual, que estabelecem exclusividade temporária sobre inovações, abrangendo patentes, direitos autorais, segredos industriais, entre outros.
Os Instrumentos multilaterais, como o Acordo TRIPS da OMC, fixam o arcabouço jurídico fundamental para a proteção dos direitos de propriedade intelectual, ao mesmo tempo em que incorporam mecanismos destinados a viabilizar o acesso e a transferência de tecnologia a países em desenvolvimento.
Essas flexibilizações manifestam-se, por exemplo, no licenciamento compulsório, que viabiliza o uso de tecnologias estratégicas por motivos de interesse público, especialmente em setores críticos como saúde, energia e agricultura.[4]
A relevância dessa transferência evidencia-se diretamente na materialização de metas globais vinculadas à inovação inclusiva, à educação de qualidade e à redução das desigualdades, pilares centrais da Agenda 2030.
O acesso equânime às tecnologias de ponta constitui instrumento crucial para que países em desenvolvimento superem entraves técnicos e financeiros, promovendo crescimento econômico sustentável e maior inclusão social.
A cooperação internacional emerge, assim, como elemento indispensável, concretizando-se por meio de parcerias público-privadas, acordos multilaterais ou ações bilaterais que impulsionem o intercâmbio tecnológico e o compartilhamento de conhecimento. As normas jurídicas devem buscar um equilíbrio entre a proteção dos direitos intelectuais e a ampliação do acesso tecnológico, evitando que a exclusividade concedida se converta em barreira ao desenvolvimento sustentável.
No contexto brasileiro, esse tema assume particular importância diante da necessidade de políticas públicas que garantam acesso igualitário, capacitação tecnológica e inovação ética, conforme as metas da Agenda 2030.
A promoção do acesso às tecnologias protegidas por direitos de propriedade intelectual é crucial para atenuar as desigualdades tecnológicas internas e fomentar um ambiente propício à inovação inclusiva e ao desenvolvimento equitativo.
O Direito Internacional da propriedade intelectual deve ser interpretado a luz do posicionamento dado pela OMPI e aplicado de modo a fomentar a cooperação internacional efetiva e o acesso justo às inovações tecnológicas, alinhando-se aos objetivos estratégicos da Agenda 2030. Tal postura contribui para consolidar um modelo de desenvolvimento sustentável que respeite tanto os direitos dos detentores de propriedade intelectual quanto as necessidades dos países em desenvolvimento, promovendo a equidade social e econômica em escala global.
Proteção do Conhecimento Tradicional e da Biodiversidade no Direito da PI
A proteção dos Conhecimentos Tradicionais (CT) e da biodiversidade integra uma questão fundamental no âmbito do Direito da Propriedade Intelectual (PI), reconhecendo-se a relevância dos saberes ancestrais das comunidades indígenas e tradicionais para a conservação ambiental, a sustentabilidade sócio-econômica e a diversidade cultural.[5]
Pois na exata medida que esses saberes, transmitidos por gerações, compõem um patrimônio cultural e biológico se constituem essenciais à manutenção dos ecossistemas e aos modos de vida profundamente arraigados em contextos históricos, sociais e ambientais específicos.
No ordenamento jurídico, tanto internacional quanto nacional, observa-se uma ampliação das funções da PI, que ultrapassa a mera proteção dos direitos individuais sobre invenções e criações artísticas, avançando para o reconhecimento e salvaguarda dos direitos das comunidades coletivas sobre suas inovações tradicionais.
Tal proteção objetiva assegurar a integridade cultural e ambiental dessas comunidades, prevenindo a apropriação indevida ou o uso não autorizado de suas competências e conhecimentos, prática comumente denominada biopirataria.
No contexto brasileiro, aponta o Governo Federal os povos e comunidades tradicionais são juridicamente reconhecidos como grupos culturalmente diferenciados, detentores de práticas, sistemas de conhecimento, formas próprias de organização social e relações específicas com os territórios e recursos naturais que utilizam para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.
A proteção jurídica estende-se, portanto, ao direito sobre esses territórios, bem como à preservação dos saberes tradicionais vinculados a eles.
No âmbito da Propriedade Intelectual, a proteção aos conhecimentos tradicionais demanda a observância de princípios como a titularidade coletiva desses saberes, a justa compensação pelo seu uso e a consulta prévia, livre e informada às comunidades detentoras, conforme convenções internacionais como a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e instrumentos da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em especial o Tratado sobre Conhecimento Tradicional e o Acordo TRIPS, que preveem mecanismos sui generis para tais proteções.
A conservação da biodiversidade vinculada aos conhecimentos tradicionais envolve práticas de preservação in situ e on farm, fundamentais para manter a diversidade genética das espécies cultivadas e domesticadas, especialmente as adaptadas a ambientes locais e resistentes a variações climáticas.
Essas práticas ilustram a interdependência entre patrimônio genético, comunidades locais e a sustentabilidade ambiental, devendo ser incorporadas às agendas jurídicas e políticas que promovem a sustentabilidade, alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), particularmente o ODS 15 – Vida Terrestre[6].
Além disso, a proteção dos conhecimentos tradicionais e da biodiversidade constitui um instrumento de promoção da inclusão social (ODS 10 – Redução das Desigualdades)[7], assegurando os direitos à reprodução cultural, social e econômica de grupos historicamente marginalizados, como indígenas e comunidades tradicionais, e favorecendo o acesso equitativo aos recursos genéticos e a valorização do saber coletivo e intergeracional.
Por isso, o ordenamento jurídico deve promover a integração dos instrumentos legais de Propriedade Intelectual com políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sustentável, ao diálogo intercultural e aos direitos humanos, garantindo a participação efetiva dessas comunidades nas decisões que envolvem a exploração econômica e científica dos recursos e saberes que lhes pertencem. [8]
Quer-se com isso significar que, é essencial que tais mecanismos reconheçam e respeitem a autonomia e a organização própria das comunidades, valorizando o diálogo entre saberes técnico-científicos e tradicionais, conforme previsto na Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e demais dispositivos correlatos.
A proteção dos conhecimentos tradicionais e da biodiversidade por meio do Direito da Propriedade Intelectual requer uma abordagem multidimensional e intercultural, que promova justiça social e ambiental, resguarde os direitos culturais e econômicos das comunidades tradicionais e contribua para o alcance dos objetivos da Agenda 2030, sobretudo os ODS 15 e 10.
A implementação rigorosa desses mecanismos fortalece a sustentabilidade ecológica e social, configurando um modelo ético para a gestão dos bens comuns globais e do patrimônio cultural imaterial.
Assim, desta maneira, a Governança da PI se constitui num instrumento para viabilizar o acesso justo à tecnologia, para promover a transferência de conhecimento e também o desenvolvimento econômico sustentável inclusivo, tudo alinhado aos ODS.
A Governança da PI como instrumento para a implementação dos ODS no Brasil
A governança da propriedade intelectual no Brasil, operacionalizada pelo Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI), representa um elemento fundamental para a efetiva implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no cenário nacional, especialmente no que tange à promoção da inovação responsável, inclusiva e sustentável. Essa governança demanda um arcabouço jurídico, institucional e regulatório robusto, capaz de articular a proteção dos direitos intelectuais ao estímulo à inovação, ao desenvolvimento econômico socialmente orientado e à preservação dos interesses coletivos e ambientais previstos na Agenda 2030.
Assim, a princípio e sob a perspectiva jurídica, a governança implica a necessidade de adequações normativas que harmonizem o sistema de propriedade intelectual brasileiro às complexas exigências tanto nacionais quanto internacionais relacionadas aos ODS. Essa harmonização envolve a criação e atualização de normas legais, regulamentos e diretrizes que assegurem não apenas a proteção adequada dos direitos de propriedade intelectual, mas também promovam a sustentabilidade socioeconômica e ambiental.
A adequação legislativa deve contemplar, por exemplo, mecanismos para garantir o acesso equitativo às tecnologias e saberes tradicionais, a proteção dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético e a promoção do uso sustentável dos recursos naturais, conforme tem sido objeto de discussões no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e demais instrumentos internacionais.
Institucionalmente, a governança da propriedade intelectual requer uma coordenação integrada entre os diversos órgãos públicos responsáveis pela legislação, regulação, fiscalização e fomento à inovação, como o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), Agências Reguladoras, além de entes ligados à ciência, tecnologia e meio ambiente.
Adicionalmente, deve contemplar a participação efetiva da sociedade civil e de grupos vulnerabilizados, assegurando um processo inclusivo e transparente, capaz de refletir a pluralidade cultural e social do país e de promover o desenvolvimento equitativo.
A governança, nesse sentido, inclui ainda a alocação adequada de recursos humanos, financeiros e tecnológicos, bem como a capacitação permanente dos atores envolvidos, conformando um sistema dinâmico e adaptável às rápidas transformações do contexto tecnológico e socioeconômico.
No âmbito regulatório, a governança da propriedade intelectual direcionada à implementação dos ODS implica a criação de mecanismos que incentivem a inovação responsável, especialmente aquela que contribui para o desenvolvimento sustentável, sem sacrificar a proteção aos direitos dos criadores e detentores de conhecimentos.
Isso envolve, ainda, o estabelecimento de políticas públicas que estimulem o empreendedorismo inclusivo, a transferência tecnológica adequada, o combate à biopirataria e à apropriação indevida de recursos genéticos e saberes tradicionais, em conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
O arcabouço regulatório deve contemplar também instrumentos de monitoramento e avaliação do impacto das políticas de propriedade intelectual sobre os indicadores dos ODS.
A experiência brasileira demonstrou que a governança da propriedade intelectual no contexto dos ODS necessita de uma atuação coordenada e multidisciplinar.
Os organismos como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em cooperação com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros órgãos governamentais, têm desempenhado papel crucial na formulação, implementação e monitoramento de políticas alinhadas às metas da Agenda 2030. Esses esforços são caracterizados pela articulação entre as diversas esferas de governo e setores da sociedade, visando assegurar uma resposta jurídica e institucional integrada aos desafios da sustentabilidade, da inovação e do desenvolvimento inclusivo.
A governança em direito e propriedade intelectual converge para a construção de um sistema nacional harmonizado, que não apenas protege os direitos de criação, mas que os articula com políticas de desenvolvimento sustentável.
A integração entre o arcabouço jurídico, as instituições e a regulação cria condições para um ciclo virtuoso de geração de conhecimento, inovação tecnológica responsável, proteção dos direitos legítimos e promoção da equidade social, elementos centrais para o alcance dos ODS, sobretudo os relacionados à inovação e ao desenvolvimento econômico sustentável. Dessa forma, a governança da propriedade intelectual emerge como um instrumento estratégico para impulsionar uma economia baseada no conhecimento, respeitando os princípios de justiça social, diversidade cultural e sustentabilidade ambiental.[9]
Incubitávelmente a conjugação entre PI e ODS pode fomentar o desenvolvimento econômico inclusivo e ambientalmente responsável, criando condições para um progresso social sustentável e equilibrado
Considerações sobre PI, ODS e desenvolvimento sustentável
A relação entre propriedade intelectual e desenvolvimento sustentável configura-se como um diálogo indispensável para o futuro global, especialmente à luz dos desafios contemporâneos de preservação ambiental, inovação tecnológica e justiça social. Conforme aponta Denis Borges Barbosa, a proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais exige uma governança jurídica que reconheça tanto os direitos material e imaterial envolvidos quanto a necessária integração desses direitos no contexto mais amplo do desenvolvimento sustentável.[10]
A inovação e a tecnologia emergem como vetores primordiais para o alcance do ODS 9, que busca promover a indústria, a inovação e a infraestrutura sustentáveis.
Nesse cenário, a propriedade intelectual desempenha papel jurídico fundamental ao assegurar a proteção das criações tecnológicas, incentivando investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Entretanto, esta proteção deve ser equilibrada, reconhecendo os direitos das comunidades titulares de conhecimentos tradicionais, cuja pluralidade e antiguidade desafiam o sistema clássico de direitos autorais e patentes.
É necessária uma solução que articule o direito à proteção com a garantia da utilização sustentável dos recursos biológicos, conforme preconizado pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD), e o incentivo às práticas culturais tradicionais compatíveis com a conservação.
No âmbito do direito internacional da propriedade intelectual, o tema da transferência de tecnologia e da cooperação internacional ganha relevância especial. A CBD impõe obrigações aos países para que adotem medidas legislativas, administrativas e políticas que facilitem o acesso às tecnologias derivadas dos recursos genéticos, promovendo o desenvolvimento conjunto e a transferência em benefício dos países em desenvolvimento.
Este quadro legal internacional pretende, assim, corrigir desigualdades e assegurar que os benefícios advindos da inovação tecnológica sejam compartilhados, reduzindo as barreiras que historicamente limitaram esse fluxo entre o Norte e o Sul globais,.
No contexto brasileiro, a governança da propriedade intelectual constitui instrumento essencial para a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
A legislação nacional tem buscado harmonizar a proteção aos direitos intelectuais com a promoção do acesso e da repartição justa dos benefícios decorrentes da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, conforme estabelecido pela Constituição Federal e regulamentado pela Lei n. 13.123, de 20 de maio de 2015. Essa governança deve articular, portanto, a proteção jurídica eficaz com políticas públicas que incentivem a inovação sustentável e a inclusão social, garantindo simultaneamente a preservação do meio ambiente e a valorização dos saberes tradicionais.
Por todo o exposto, o diálogo entre propriedade intelectual e desenvolvimento sustentável exige uma compreensão integrada dos aspectos jurídicos, culturais e econômicos envolvidos. Somente uma governança eficiente, que respeite os direitos dos diversos atores e promova a transferência de tecnologia inclusiva, poderá fortalecer a inovação como instrumento de progresso alinhado aos desafios ambientais e sociais do século XXI.
Essa integração é imprescindível para que o Brasil e o mundo avancem na concretização dos ODS, em especial o ODS 9, fomentando um desenvolvimento industrial inovador, ético e sustentável.
Referências:
BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
BARBOSA, Denis Borges. O Acordo TRIPs da Organização Mundial de Comércio. Disponível em: https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/acordo_trips.pdf
Brasil. (1996). Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. Decreto nº 4.339, de 22 de agosto de 2002. Institui princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional da Biodiversidade. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 23 ago. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4339.htm.
BRASIL. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 8 fev. 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm.
BRASIL. Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015. Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da Constituição Federal, o art. 1º, o caput e o § 1º do art. 8º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e os arts. 1º, 8º, alínea “j”, 10, “c”, 15 e 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998, institui o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGen, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 20 maio 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2015/lei/l13123.htm.
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MEDEIROS, Heloisa Gomes. Revista Rede de Direito Digital, Intelectual e Sociedade – vol.4 n.8 – 2024 Conhecimentos Tradicionais E Sustentabilidade Corporativa: Proteção e Valorização No Contexto ESG DOI: https://doi.org/10.5380/rrddis.v4i8.99428
WACHOWICZ, Marcos. Propriedade Intelectual e ESG: Inovação Sustentável. Disponível em: https://gedai.ufpr.br/propriedade-intelectual-e-esg-inovacao-sustentavel/
[1] Professor de Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR e docente no Programa de Pós-Graduação – PPGD/UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa – Portugal. Professor da Cátedra de Propriedade Intelectual no Institute for Information, Telecommunication and Media Law – ITM da Universidade de Münster – ALEMANHA (2018/19). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial – GEDAI / UFPR vinculado ao CNPq.
[2] Objetivo 9. Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/9
[3] ILHA, Adriana L.H., WACHS, Pricila, BRUCH, Kelly L. Marcas Coletivas Como Instrumento De Valorização De Territórios. RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 53-72, 2024. DOI: https://doi.org/10.5380/rrddis.v4i8.99411
[4] BARBOSA, Denis Borges. O Acordo TRIPs da Organização Mundial de Comércio. Disponível em: https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/acordo_trips.pdf
[5] MEDEIROS, Heloisa Gomes. Revista Rede de Direito Digital, Intelectual e Sociedade – vol.4 n.8 – 2024
Conhecimentos Tradicionais E Sustentabilidade Corporativa: Proteção e Valorização No Contexto ESG
DOI: https://doi.org/10.5380/rrddis.v4i8.99428
[6] ODS 15 – Vida Terrestre – Disponível em: https://www.ipea.gov.br/ods/ods15.html
[7] ODS 10 – Redução das Desigualdades – Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/10
[8] CUNHA FILHO, Humberto. BOTELHO, Isaura. SEVERINHO, José Roberto (organizadores). Direitos culturais. Salvador: Editora EDUFBA, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/26054/1/DireitosCulturais_CulturaPensamento-EDUFBA-2018.pdf
[9] WACHOWICZ, Marcos. Propriedade Intelectual e ESG: Inovação Sustentável. Disponível em: https://gedai.ufpr.br/propriedade-intelectual-e-esg-inovacao-sustentavel/
[10] BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 614.