A Propriedade Intelectual como Ferramenta na Recuperação Judicial de Empresas
Autora: Ana Paula Bernardino Paschoini
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo explorar dois temas afetos ao mundo jurídico no campo do direito comercial, quais sejam: a propriedade intelectual e a recuperação judicial. Esta pesquisa traz a provocação, sob a perspectiva jurídica, do potencial da propriedade intelectual para o maior êxito da recuperação judicial, especificamente quanto às possibilidades de esses ativos intangíveis serem convertidos em recursos financeiros para pagamento dos credores, uma vez que referidos ativos impactam positivamente o valor de mercado das empresas. Para melhor elucidar a premissa de pesquisa, foram analisados processos de recuperação judicial, a fim de evidenciar a contribuição da propriedade intelectual como meio de recuperação de empresas em crise, o que permitiu identificar dificuldades para a correta identificação e valoração dos direitos intelectuais, dentre outros desafios e oportunidades para maior destaque da propriedade intelectual, observadas disposições específicas da Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), da Lei de Programa de Computador (Lei 9.609/1998), da Lei de Direito do Autor (Lei 9.610/1998), da Lei de Proteção de Cultivares (Lei 9.456/1997), para resguardar a devida segurança jurídica de todos os atores envolvidos.
Ativos Intangíveis na Recuperação Judicial de Empresas.
A propriedade intelectual, que nas palavras do autor João da Gama Cerqueira “se traduz no direito de propriedade sobre concepções e produções da inteligência incorporadas à indústria para exploração ou proveito econômico de seus titulares.
O presente artigo fundamenta-se na pesquisa realizada anteriormente pela autora Ana Paula Bernardino Paschoini, intitulada “A contribuição da propriedade intelectual como meio de recuperação no âmbito da Lei 11.101/2005: análise de casos de recuperações judiciais”, apresentada como dissertação de mestrado em Direito Comercial na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2024. Na dissertação, se investigou o potencial dos ativos de propriedade intelectual como instrumentos estratégicos para viabilizar a recuperação judicial de empresas em crise, analisando casos práticos e explorando a relevância desses ativos intangíveis na reestruturação econômica e jurídica de organizações em dificuldade.
Os direitos intelectuais abrangem marcas, patentes de invenção ou de modelos de utilidade, desenho industrial, programas de computador, direitos do autor e cultivares”, e a empresa em crise são assuntos de imediata aderência com os fenômenos da vida cotidiana, considerando os desafios do século XXI como tecnologia, interdisciplinaridade e desenvolvimento econômico e social.
Em 2023, o Índice Global de Inovação (IGI) da Organização Mundial da
Propriedade Industrial (OMPI), que mede o desempenho dos ecossistemas de inovação de mais de 132 economias, identificou um ambiente de recuperação pós-pandemia e de inovação digital como a inteligência artificial, destacando o Brasil como uma das economias de renda média que mais melhoraram o desempenho em inovação na última década e pela alta concentração de unicórnios em relação ao desenvolvimento econômico. Entretanto, não obstante o maior volume de pedidos de recuperação judicial no Brasil, que atingiu mais de 1,4 mil pedidos em 2023, segundo CNN Brasil, verifica-se a assimetria informacional e a dificuldade de monetização da propriedade intelectual no momento de crise, o que desperta a relevância do tema.
A reflexão proposta circunda em torno da tutela jurídica da propriedade intelectual no no âmbito da Lei 11.101/2005, por meio da análise de casos práticos de recuperações judiciais, considerando que os bens e direitos da empresa em crise devem contribuir para o soerguimento da empresa, seja no sentido de a empresa em crise mantê-los na nova configuração pós-crise, seja mediante a realização especialmente de propriedade intelectual, isoladamente ou em conjunto com outros ativos.
A propriedade intelectual como meio de recuperação da empresa em crise
O pedido de recuperação judicial deve ser instruído com os documentos previstos no art. 51, dentre os quais: (i) demonstrações contábeis, especialmente o balanço patrimonial, para a identificação dos ativos intangíveis; e (iii) relação de bens e direitos integrantes do ativo não circulante, para a correta compreensão dos ativos. No decorrer do processo recuperacional, podem surgir oportunidades de um novo olhar para a propriedade intelectual, sob a perspectiva dos meios de recuperação a serem utilizados no curso da recuperação judicial, a fim de procurar maximizar os valores a serem angariados pela empresa em crise.
É natural que a empresa em crise efetue o mapeamento dos ativos não circulantes para transformar em dinheiro, dando fôlego ao devedor e sequência ao processo de reestruturação, tendo como norteador o desfazimento daqueles bens que não são essenciais ao funcionamento da empresa, o que implica poder se desfazer de marcas, patentes, desenho industrial e programas de computador. No entanto, isso não implica que a empresa em crise deverá obter o melhor valor de mercado por ocasião da venda dos bens, uma vez que depende não só da precificação do ativo, mas também da receptividade do mercado no momento da venda com relação ao produto e às externalidades de aquisição de uma empresa em crise, o que pode não espelhar o valor de mercado que outrora a propriedade intelectual tinha no mercado no momento de ascensão da empresa.
No entanto, em virtude da imprecisão quanto à propriedade e da dificuldade de contabilização dos intangíveis, que na visão do autor Antônio Lopes de Sá “o patrimônio imaterial das empresas é um resultado do aumento de funções do próprio capital material e dos agentes que sobre eles atuam para dinamizá-lo e aumentar-lhe a capacidade de utilidade ou eficácia”, é comum uma discrepância significativa entre valor de mercado e valor contábil, sobretudo porque não há unificação no tratamento contábil de questões como a definição, o reconhecimento, a mensuração e o registro contábil de ativos intangíveis. Assim, o valor contábil acaba por não refletir o valor de mercado da organização porque referidos ativos são avaliados por sua utilização e por seus benefícios presentes e futuros, não pelo valor de aquisição. O valor da propriedade intelectual está diretamente relacionado à capacidade de afastar a concorrência do mercado em que a empresa em crise atua, aliando-se os direitos legal e econômico.
Para uma maior precisão do valor dos ativos da empresa em crise, devem ser considerados todos os custos implicados no processo de recuperação judicial, tais como os custos dos profissionais envolvidos no processo de definição dos créditos e venda dos ativos (avaliadores e leiloeiros), custos de manutenção e armazenagem dos bens, custos para o encerramento das atividades do devedor (por exemplo, custos de rescisão de contratos de trabalho e de fornecimento) etc. Inevitável, porém, não deixar de constar que a avaliação possui bastante subjetividade, a depender dos critérios adotados, e pode resultar em diferentes valores, o que leva especialistas a se basearem em comparações de mercado (benchmarking) com empresas do mesmo setor, o que demanda análises complementares além da avaliação propriamente dita.
Um recente estudo francês do autor Ethienne André (Les actifs incorporels de l’enterprise em dificulte) sobre o ativo intangível em empresas em crise destacou a necessidade de adaptação das leis dedicadas à recuperação judicial para traçar soluções eficazes no curto prazo mediante a valorização dos ativos intangíveis, a fim de melhor evidenciar seus méritos e qualidades com o intuito de promover sua alienação, o que envolve inclusive a reorientação em torno da estruturação de seu valor. Dada a urgência de definição dos meios de recuperação, coloca-se como tarefa de grande complexidade a especificação dos ativos da empresa em crise que podem contribuir para geração de recursos.
Na mesma direção, diante de consultas a distintas recuperações judiciais de empresas brasileiras, pôde-se verificar que a empresa em crise inicialmente não se dedica à identificação de propriedade intelectual como meio de contribuição e, em raras exceções, envidará esforços voltados à realização de recursos financeiros por desfazimento de titularidade de propriedade intelectual, quando não forem mais de valia à atividade central da empresa em crise, valendo-se da alienação por meio de unidades produtivas, a fim de resguardar terceiros de quaisquer riscos de sucessão.
Considerações Finais
Dada a especificidade da propriedade intelectual, que exige conhecimento específico tanto para cumprimento de requisitos técnicos e jurídicos quanto para sua avaliação e consequente realização, é de suma importância que seja efetuado um adequado mapeamento da propriedade intelectual que a empresa em crise detém, comparando inclusive os registros da empresa com os do INPI.
Mediante a análise de recuperações judiciais não se tem percebido movimento equivalente de apreciação da propriedade intelectual na venda de ativos das empresas em crise, o que decorre da dificuldade de valoração de ativos intangíveis dadas as circunstâncias ocultas que o circundam, particularmente em momentos de incerteza econômica, provocando enorme insegurança quanto a um valor assertivo, até mesmo porque seu valor está diretamente relacionado ao exercício das atividades empresariais por se enquadrarem como ativos incorpóreos de exploração.
Nesse sentido, a concentração elevada de investimentos em intangíveis deve vir acompanhada do esforço de políticas públicas nacionais para incentivar o apoio ao empreendedorismo e à inovação com a valorização da propriedade intelectual não apenas com os registros no INPI, mas especialmente por meio de estímulos à criação de um mercado secundário de transações.
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