As Licenças Compulsórias no contexto da pandemia de COVID-19
Pedro de Perdigão Lana – Advogado. Graduado em Direito pela UFPR, Mestrando em Direito Empresarial pela Universidade de Coimbra (PT). Integrante do GEDAI/UFPR
Patrícia Piovesan – Advogada na área da Propriedade Intelectual, Pós graduanda em processo civil pela UERJ. Pesquisadora do GEDAI/UFPR
Revisora: Helóisa Gomes Medeiros
1. O licenciamento compulsório de patentes na Pandemia COVID-19
A pandemia ensejou um esforço mundial na busca do desenvolvimento de medicamentos específicos para seu combate. Diante disto, surge a questão da descoberta pela indústria farmacêutico de um fármaco eficiente para a cura viral do COVID-19 e o direito à patente para exploração exclusiva no prazo de 20 anos. Porém, na condição de extrema necessidade que envolve a ordem social e de saúde mundial, poderia isso se tornar um problema?
No combate à pandemia a questão das licenças compulsórias de patentes, (às vezes chamado de “quebra de patentes”) em razão de interesse público ou emergência nacional, é notoriamente um dos que mais inflama ânimos na propriedade intelectual de biotecnologia e produtos farmacêuticos.
A recente pandemia do COVID-19, causado pelo SARS-CoV-2 da família coronavírus, trouxe mais uma vez o tema do licenciamento para o centro dos holofotes, ao fornecer diversos exemplos da utilização desse instrumento como política pública de combate à doença.
Antes, é preciso definir os conceitos essenciais. A patente é “um título de propriedade temporária sobre uma invenção ou modelo de utilidade, outorgado pelo Estado aos inventores ou autores” [1], podendo ser definida de maneira mais didática como um direito à exclusividade da exploração daquela invenção/modelo de utilidade.
A licença compulsória, por sua vez, é a possibilidade de exploração efetiva por terceiros dessa patente mesmo sem o consentimento do titular, sob certas condições e com pagamentos de royalties, definidos de forma impositiva. Ela pode, por exemplo, ser emitida de ofício por autoridade governamental das diferentes esferas federativas ou tribunal em casos de necessidade de saúde pública. Não se trata, nesse último caso, de desapropriação, por ser temporária e ser extinguida após cumprir sua finalidade.
A aplicação da medida extraordinária do licenciamento compulsório não é, de fato, uma “quebra de patente”, uma vez que o titular desta mantém seus direitos e recebe um pagamento pelas cópias produzidas ou importadas. Exemplo disso, é o Decreto nº 6.108/2007 (revogado no ano passado), que, muito embora guardasse falhas em sua concessão, previu em seu artigo segundo porcentagem sobre a comercialização do produto explorado.
Importante mencionar que o licenciamento compulsório não é desprovido das devidas garantias asseguradas por lei ao titular do medicamento, existindo regras internacionais e nacionais que versam sobre os procedimentos a serem tomados e justa remuneração do titular. Apesar de não se basear na livre negociação de porcentagens ou valores fixos, como são geralmente as licenças, o proponente do licenciamento compulsório deve antes tentar entrar em acordo com o titular, e os valores impostos por ato normativo podem depois serem revisados pelo órgão competente (no caso brasileiro, o INPI).
2. Os posicionamentos políticos e governamentais sobre o eventual licenciamento compulsório de patentes para conter a Pandemia COVID-19
Vários países recentemente implementaram ou iniciaram procedimentos para licenças compulsórias.
Em 17 de março de 2020, o Parlamento do Chile adotou unanimemente uma resolução declarando que a pandemia justifica a suspensão do monopólio de produtos medicinais e tratamentos [2].
Em 19 de março, Israel emitiu licenças compulsórias relacionadas ao lopinavir/rinotavir, que são hoje usadas para o tratamento de HIV, mas estão sendo testadas no combate ao COVID-19 [3].
Em 20 de março, a Assembleia Nacional do Equador aprovou uma resolução para permitir que o Ministério da Saúde pudesse licenciar compulsoriamente tecnologias relacionadas ao coronavírus.[4]
Com toda essa pressão surgindo de diferentes pontos do mundo, inclusive em países reconhecidos pelo respeito às normas internacionais de propriedade intelectual, a empresa AbbVie decidiu renunciar mundialmente aos seus direitos de patente sobre a lopinavir/ritonavir, efetivamente permitindo a comercialização de genéricos por outras empresas. [5]
Do outro lado, o Ministro da Saúde do Brasil declarou em 04 de julho de 2019 que o Brasil “jamais deveria fazer isso [quebra de patentes de medicamentos]” [6]. Tal frase foi proferida em um contexto de apoio ao desenvolvimento da indústria farmacêutica no país, sob o viés amplamente difundido que a simples ameaça de quebra de patentes já reduziria os investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Mas, como se evidenciou poucos meses depois (no meio da pandemia que atualmente vivemos), foi infeliz ao se basear em uma visão restrita do valioso instituto das licenças compulsórias.
3. O licenciamento Compulsório de patentes no Brasil e no Acordo TRIPS
A previsão desse instituto já existe nas leis nacionais de Propriedade Industrial da maioria dos países. No Brasil, ela está prevista na seção III da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), respaldada nos arts. 5º, XXIII e 6º da Constituição Federal de 1988, que estabelece, respectivamente, a função social da sociedade (que abrange também a propriedade intelectual) e a saúde como um direito social fundamental.
O art. 71 da LPI é o da hipótese tratada nesse texto, sobre a emergência nacional ou interesse público, regulamentado pelo Decreto nº 3.201/1999. A emergência nacional deste artigo é aquele referente à iminente perigo público em todo ou parte do território, enquanto o interesse público é mais abrangente e engloba, dentre outros, aspectos sobre saúde pública, nutrição, defesa do meio ambiente, ou outros de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou socioeconômico do País. [7]
Mas deve-se observar que dar fim às situações emergenciais também é matéria de interesse público, de forma que ambos se sobrepõem. Ou seja, em meio à pandemia é dever do estado agir em conformidade com a defesa da sociedade, garantindo o direito à sua preservação e segurança.
A possibilidade de uso da licença compulsória foi ampliada também por emenda no Acordo TRIPS (sigla em inglês para o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao comércio), o qual originalmente tinha um âmbito de aplicação restrito, por meio do sistema do parágrafo 6º da Declaração de Doha, abrangendo o interesse de países de menor grau de desenvolvimento dependentes da importação de medicamento. [8]
O Brasil apresenta um dos casos mais paradigmáticos sobre licenciamento compulsório, anterior à emenda no TRIPS, relativa ao medicamento retroviral efavirenz. Já restavam comprovados os proporcionalmente elevados custos do sistema de saúde nacional decorrente dos preços gerados pelo monopólio dos fármacos desejados [9]. Todavia, a estratégia de negociação que o governo brasileiro utilizou, ameaçando fazer uso do art. 71 da LPI [10], não foi frutífera com a empresa Merck Sharp & Dohme. Assim, pela primeira vez no Brasil, foi emitido em 2007 um licenciamento compulsório com base legal no interesse público, permitindo a compra de genéricos de outros laboratórios qualificados pela OMS. [11]
Esses exemplos e comportamentos são fundamentados nas próprias teorias de explicação de existência dos direitos de propriedade intelectual. Mais especificamente, da hoje dominante vertente utilitária, fundamentada essencialmente em incentivos econômicos. Criados para suprir uma falha de mercado e estimular o investimento em inovação e originalidade, seja no âmbito tecnológico ou cultural, esses direitos devem ser equilibrados com o interesse público (e do público). Ainda, por vezes parecem não cumprir satisfatoriamente os objetivos a que foram confiados, ao menos no atual modelo implementado. [12]
4. A Pandemia COVID-19 e possíveis estratégias políticas de Propriedade Intelectual para o desenvolvimento de novos tratamentos
A propriedade intelectual na indústria farmacêutica é frequentemente alvo de críticas por também se basear nos incentivos econômicos para priorização nas escolhas de Pesquisa e Desenvolvimento – P&D, em um setor tão delicado quanto o da saúde e vida humana. Surgem aqui algumas preocupantes distorções, cujo melhor exemplo é a falta de estímulos para desenvolvimento de vacinas, especialmente àquelas voltadas para doenças características de países pobres.
Afinal, além do pouco poder aquisitivo dessas populações, as vacinas são medidas preventivas que demoram meses para serem finalizadas, além de terem custos elevados de testagem/aprovação regidos por estrita regulamentação.
É muito difícil desenvolvê-las a tempo de responder um surto pandêmico, e sua própria natureza é evitar o evento de alta procura por elas. São também tendencialmente utilizadas apenas uma (ou poucas) vez por pessoa. Por fim, os ganhos para o sistema de saúde como um todo acabam não sendo revertidos para o desenvolvedor da vacina. [13]
Tal contexto é agravado por comportamentos mais claramente maliciosos, como apontaram notícias sobre pressões de bancos de investimento sobre empresas farmacêuticas para que aumentassem o preço dos remédios no meio do COVID-19 [14] ou sobre a tentativa de acordo do presidente dos EUA com a Bayer (o que foi negado pelas partes envolvidas) para que desenvolvessem uma vacina com exclusividade de direitos para a Casa Branca [15].
Assim, mesmo em uma visão utilitarista e econômica, são necessárias “válvulas de escape” para corrigir incongruências do sistema de propriedade intelectual, que por sua vez intenta corrigir as falhas de mercado na seara da inovação tecnológica.
Uma solução pode ser a criação ou ampliação de exceções aos direitos exclusivos, voltadas para atividades de pesquisa, firmadas em lei ou por tribunais. Um exemplo (limitado, mesmo após ampliação jurisprudencial) é a exceção para pesquisas sem finalidade comercial da §271(e) (1) do Hatch–Waxman Act de 1984, nos Estados Unidos [16] ou a exceção bolar do art. 43 da LPI brasileira, permitindo testes logo antes da expiração da patente. Outra opção é a formação de parcerias público-privadas para o desenvolvimento de medicamentos, com elaboração de contratos diferenciados de propriedade intelectual, no qual se destaca a Coalizão para Inovações nos Preparativos Epidêmicos (CEPI, na sigla em inglês) [ver novamente a nota 13].
Contudo, essas medidas parecem ser mais efetivas para a etapa de P&D e preparação para futuros surtos endêmicos.
Caso descobrissem agora que medicamentos já existentes fossem comprovadamente efetivos no tratamento do COVID-19, o súbito aumento da procura por esses tratamentos dificilmente seria atendido de forma imediata pelas empresas farmacêuticas responsáveis por sua produção, levando à escassez do produto e a uma exorbitante alta dos preços.
Já se constatou esse movimento mesmo com meros indícios de eficácia no tratamento do COVID-19 por meio de hidroxicloroquina, cloroquina e azitromicina, resultando em um rápido esgotamento em farmácias por todo o mundo [17]. Nota-se que os fármacos mencionados não são mais protegidos por patente e sua produção e comercialização são livres, o que aumenta o acesso da população e a possibilidade de produção em larga escala. [18]
Entretanto, o lopinavir e rinotavir, que também estão sendo atualmente testados no combate ao COVID-19, não estão abarcados pela mesma liberdade de comercialização e desprovidos de empecilhos burocráticos, já que (no Brasil e em outros países) o composto é objeto de pedido de patente e utilizado no tratamento para HIV-1. Se comprovada sua utilidade, o licenciamento compulsório poderia se tornar medida urgente no combate a pandemia instalada no Brasil e no mundo.
Felizmente, a ameaça do uso desse instituto por uma miríade de países influenciou o titular da patente a renunciar aos direitos no meio da pandemia [cf. novamente 5]. Essa ação, contudo, acabou impedindo o aprofundamento do debate sobre como as tecnologias medicinais serão lançadas no mercado e a sua disponibilidade para a população geral.
5. Conclusão
Há agora uma clara necessidade de colaboração global, pensando nas condições de acesso (aos medicamentos e o financiamento) dos tratamentos que surgirem.
A medida da licença compulsória, claro, não pode ser a única. Caso contrário, se não utilizada com parcimônia, põe-se em risco a própria indústria farmacêutica (incluindo a nacional). Por isso que a emergência nacional e/ou a supremacia do interesse público devem sempre ser os norteadores para sua concessão.
A decisão de implantar uma licença compulsória só deve ser tomada em última instância, quando inexistirem alternativas e sendo levado em consideração o contexto da situação que o levaram a considerar tal instrumento, como é o caso da pandemia atual.
Nesse caso, o licenciamento não se resume à uma simples “quebra de patentes” por questões de preço injusto, mas sim à urgente necessidade de ajustar o acesso a nível populacional justo e amplo. As patentes são criadas para garantir ao inventor o devido retorno sobre sua atividade inventiva, mas ela sempre tem como plano de fundo o benefício público. Caso se distancie dessa premissa, surge a necessidade de adequá-la.
Fora do contexto pandêmico que é abarcado pela situação emergencial, ressalta-se a título informativo que o licenciamento compulsório por meio do interesse público é também meio de impedir o abuso do poder econômico pelo titular de patentes farmacêuticas que esteja restringindo o acesso a medicamentos, principalmente nos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos onde o acesso é ainda mais restrito.
Assim, a exemplo do Brasil, é benéfica a formação de uma aliança envolvendo as autoridades de defesa da concorrência, de propriedade industrial e da saúde pública, que poderão atuar conjuntamente para coibir tal abuso do poder econômico pelos titulares de patentes farmacêuticas.
Em uma situação na qual muitas regiões e países sem recursos estão sendo atingidos e a demora de dias para adaptação significaria centenas ou milhares de mortes, cumpre lembrar que o instituto da licença compulsória não é uma infração a um sistema funcional de propriedade intelectual, e sim parte integrante e necessária dele. Ele aparece como solução para um problema comum à toda população, em meio a um estado crítico e de difícil resolução que, ao menos temporariamente, coloca em segundo plano os interesses econômicos em nome do bem maior, que é a saúde pública.
[1] http://www.inpi.gov.br/menu-servicos/patente/guia-completo-de-patente
[2] https://www.keionline.org/wp-content/uploads/resolucioncoronavirus.pdf
[3] https://www.law360.com/articles/1255079/israel-defies-abbvie-ip-to-import-generic-drugs-for-covid-19
[4] https://www.keionline.org/wp-content/uploads/ES-Ecuador-CL-resolution.pdf
[5] https://medicineslawandpolicy.org/2020/03/covid-19-and-the-come-back-of-compulsory-licensing/
[7] Ver, para aprofundamento, BARBOSA, Denis Borges. Licenças compulsórias: abuso, emergência nacional e interesse público. Revista da ABPI, nº 45. Mar./Abr. 2000.
[8] Originalmente, o TRIPS restringia a licença compulsória para atender o mercado interno e lidar com comportamento prejudiciais à concorrência. Cf. http://www.inpi.gov.br/noticias/emenda-de-trips-permite-licenca-compulsoria-para-exportar-medicamentos
[9] VIEIRA, Fabiola Sulpino. Gasto do Ministério da Saúde com Medicamentos: Tendência dos Programas de 2002 a 2007. Revista de Saúde Pública, v. 43, n. 4, p. 674-681, 2009.
[10] Cumpre notar que essa foi uma estratégia amplamente adotada inclusive por países ricos, com notórios exemplos na França, Bélgica, Coréia do Sul e até os Estados Unidos (contra a Bayer, sobre o remédio Cipro), cujos representantes comumente criticam o ‘instituto no âmbito internacional e instauram medidas retaliatórias. Cf. REICHMAN, J. H. Comment: Compulsory Licensing of Patented Pharmaceutical Inventions: Evaluating the Options. The Journal of Law, Medicine & Ethics, v. 37, n. 2, p. 247–263, jun. 2009.
[11] Para mais informações do desenrolar da situação que culminou com essa quebra de patente, ver MARQUES, Ubirajara Regis Quintanilha; et al. Brazil’s AIDS Controversy: Antiretroviral Drugs, Breaking Patents, and Compulsory Licensing. Food and Drug Law Journal, vol. 60, no. 3, p. 471-478, 2005.
[12] A posição majoritária na academia e no mercado é que resta suficientemente comprovada, inclusive por pesquisa empíricas, a efetividade do atual modelo de direitos intelectuais para os objetivos a que se propõe. Não se ignora, contudo, a existência de sólidas críticas que sugerem a necessidade de, no mínimo, reformas. Ver, por ex.: LEMLEY, M. A. Faith-Based Intellectual Property. UCLA Law Review, v. 62, p. 1328–1346, 2015.
[13] RUTSCHMAN, Ana Santos. The Intellectual Property of Vaccines: Takeaways from Recent Infectious Disease Outbreaks. Michigan Law Review Online, 2020, Forthcoming. Disponível no SSRN: https://ssrn.com/abstract=3546368.
[14] https://theintercept.com/2020/03/19/coronavirus-vaccine-medical-supplies-price-gouging/
[16] http://infojustice.org/archives/42116
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