“COPYRIGHT TROLLS” no Brasil violam Direitos Digitais e a Liberdade na INTERNET
Grupos e entidades da sociedade civil assinam nota conjunta denunciando a ação de “copyright trolls” no Brasil, assinaram a nota: Creative Commons Brasil, Coalização Direitos na Rede, GEDAI – Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial – UFPR, IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, dentre outras entidades.
Durante os últimos meses de 2020 vários internautas receberam cartas remetidas por um escritório de advocacia especializado em propriedade intelectual com notificações extrajudiciais contendo ameaças e propondo um “acordo” de R$ 3.000,00 em razão de supostos downloads ilegais de filmes, a fim de evitar uma judicialização.
Como isso ocorreu?
A empresa Copyright Management Services, representada pelo escritório de advocacia mencionado, ajuizou um processo judicial de produção antecipada de provas contra a Claro S.A. (processo n. 1021624-84.2020.8.26.0100). Visava nele obter informações pessoais (“todos os dados cadastrais, tais como nome completo, endereços físico e eletrônico, eventuais perfis em redes sociais, telefones, CNPJ ou CPF, entre outros”) relacionadas aos IPs que, ao menos alegadamente, foram obtidos por meio de um sistema eletrônico de controle de pirataria online.
O escopo das informações exigidas é claramente exagerado, requerendo que sejam repassados muito mais dados pessoais (como perfis de redes sociais, beirando o absurdo) do que o necessário para o intuito da autora da ação judicial, o que é em si uma visível e grave irregularidade diante dos princípios do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Então, a Claro S.A., representada pelo escritório de advocacia Rosenthal, Guaritá e Facca Advogados em uma grave falha, que entra em conflito direto com o princípio da prevenção da LGPD (mais precisamente em relação aos arts. 46 e 47 da Lei), disponibilizou em um processo judicial de acesso público (sem segredo de justiça) um link direcionando para planilhas hospedadas na plataforma Google Drive, com o detalhamento de pelo menos grande parte das mais de 53 mil identificações solicitadas pelo requerente, quais sejam: nome completo, CPF, endereço e e-mail. Em outras palavras, qualquer pessoa podia ter acesso às planilhas, colocadas em petição acessível por qualquer pessoa credenciada (incluindo qualquer advogado) no sistema eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Além dos erros já citados, o escritório de advocacia Rosenthal, Guaritá e Facca Advogados, representante da Claro S.A., também adicionou às planilhas dados de usuários relativos a um outro processo judicial, sobre pirataria de software. Inclusive, tal fato foi objeto de advertência dos advogados da Kasznar Leonardos, que representa a Copyright Management Services.
A partir disso, as notificações propondo “acordos” para evitar a judicialização foram distribuídas. Mas, como as informações pessoais foram expostas publicamente, não há sequer como confirmar que elas são verídicas e realmente provenientes da empresa e do escritório de advocacia que são partes na ação judicial, já que outros interessados podem ter tido acesso aos dados e enviado as notificações. E além disso, há relatos de notificados que tentaram entrar em contato com o escritório, mas não obtiveram resposta.
Como os notificantes sabem que quem efetivamente baixou o conteúdo foi realmente a pessoa a quem a notificação foi enviada?
Aqui está um dos pontos chaves que todos e todas devem estar cientes: eles não sabem. Na ação judicial supramencionada, foi exposta uma lista que ligava os IPs com informações pessoais. Mas isso são indicativos não definitivos, diante da possibilidade de usos compartilhados.
Esse tipo de medida de perseguição dos usuários é efetiva?
A resposta é um contundente não. A perseguição massiva aos usuários que baixam conteúdo protegido por direito autoral foi inócua tanto nos Estados Unidos como na Europa, com o cometimento de inúmeros erros e resultados sociais e econômicos desastrosos, tanto para o público quanto para a própria indústria de entretenimento. Essas experiências demonstraram que a melhor solução para combater a pirataria é aprimorar a qualidade dos serviços e produtos legalizados, oferecendo ao consumidor algo que ele se sinta motivado a assinar ou comprar, não pela exclusividade, mas pela comodidade, oferta e preço justo. A indústria investir tempo e dinheiro em perseguição e na criminalização das pessoas que compartilham conteúdo online é o mesmo que agir contra os seus principais clientes, pois o que a grande maioria dos estudos independentes mostram é que aqueles que fazem o uso de recursos “piratas” são, também, os mais interessados em produtos culturais (filmes, músicas, etc.) Com isso, são aqueles que mais gastam dinheiro com estes itens, mas fazem o uso de métodos alternativos para suprir as limitações existentes nos serviços e produtos legais.
Há uma base jurídica para um processo judicial?
O senso comum poderia indicar que, como o download é de um produto disponibilizado irregularmente, isso seria uma infração, principalmente tendo em vista o art. 184 do Código Penal. Mas essa é uma visão literalista e superficial da nossa legislação, inclusive da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98). Uma abordagem sistemática e teleológica das normas explicita que o alvo da lei e a aplicação efetiva dela pelo Poder Judiciário são justamente os grandes agentes que promovem a pirataria e buscam lucrar com isso, e não os usuários comuns. Embora há muitos anos algumas associações e entidades busquem enquadramentos mais abrangentes para o tipo penal, a jurisprudência nacional e boa parte dos maiores nomes da doutrina especializada do Direito Autoral defendem que a ausência de fins lucrativos (ou de ganhos econômicos) e a inexistência de danos ao titular descaracterizariam a infração penal, posição ainda corroborada pelos princípios que exigem interpretações restritivas de normas criminais. E o foco nesses grandes agentes movidos pelo lucro, por fim, seria particularmente relevante em países como o Brasil, em que o direito a participar da vida cultural e a fruir as artes — consagrado na Declaração Universal de Direitos Humanos — tem seu exercício especialmente dificultado para os usuários comuns, em função das desigualdades sociais, dos altos preços e da escassez de políticas públicas e aparelhos culturais que possibilitem acesso à cultura.
Há, então, pelo menos uma base técnica para um processo?
Esse é um ponto que reforça a aparência de golpe das notificações extrajudiciais enviadas, porque seus conteúdos são marcados por uma qualidade técnica duvidosa. A resposta é, como nas anteriores, negativa. As notificações extrajudiciais apresentam grande fragilidade na descrição técnica da suposta infração cometida e fazem importantes confusões conceituais, como tratar site, tracker e cliente de torrent como se fossem todos a mesma coisa. Ainda por cima, em parte das notificações enviadas, não está indicado qual aplicativo foi usado pelos usuários na realização do suposto download. Mais gravemente, enquanto na ação judicial se afirma que a “ferramenta” utilizada para acompanhamento dos downloads foi a GuardaLey Infringement Detection System, nas notificações se afirma, contraditoriamente, que foi a Bunting Digital Forensics, cujo site não presta qualquer informação sobre a existência ou funcionamento dessa ferramenta. Além disso, não há a mínima garantia de que estes IPs foram obtidos de forma séria e confiável, sem margem para fraudes, adulterações ou equívocos, o que levanta, inclusive, o questionamento se estes registros realmente pertencem a usuários que estavam fazendo o uso de torrent.