DIREITO À EDUCAÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM TEMPOS DE PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19)
Bruna Homem de Souza Osman – Advogada e professora do Centro Universitário Dinâmica das Cataratas – UDC, Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Idoso da OAB-PR Subseção de Foz do Iguaçu. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR.
Jessica Aparecida Soares – Advogada e professora do curso de direito das Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu – UNIFOZ. Mestra em Sociedade, Cultura e Fronteiras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE (2017). Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR.
Michelle de Oliveira – Advogada e membra permanente do Grupo de Discussão da Comissão de Direito Tributário da OAB-PR. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR.
Revisão: Pedro de Perdigão Lana
No final de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou situação de emergência em saúde pública de importância internacional a doença causada pelo Coronavírus (COVID-19), recomendando isolamento e tratamento dos casos identificados, testes massivos e distanciamento social.
Pelos diversos países do globo medidas foram tomadas. Dentre elas, fronteiras, escolas e comércios não essenciais foram fechados, houve bloqueios de áreas para isolar indivíduos e o distanciamento entre pessoas foi adotado.
No Brasil, pela Portaria n. 188 de 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde declarou emergência em saúde pública de importância nacional e, em um primeiro momento as prioridades foram direcionadas à saúde em detrimento de outros setores.
No que tange à educação, o Brasil repetiu ações semelhantes às tomadas pelos países que já haviam sido primeiramente atingidos pela pandemia[i] e suspendeu as atividades das escolas e universidades.
Tanto assim que o Ministério da Educação (MEC), em 17 de março de 2020, através da Portaria n. 343[ii], optou em tempos de pandemia da COVID-19 pela substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais nas instituições de educação superior do sistema federal de ensino.
No mesmo caminho, em 1º de abril de 2020, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 934, estabelecendo normas excepcionais para o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública.
Mas no parecer CNE/CP n. 05/2020, aprovado em 28 de abril de 2020[iii], o Conselho Nacional de Educação – CNE possibilitou o cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da COVID-19.
Logo, diante da necessidade de continuar as atividades escolares e da impossibilidade da presença dos estudantes em ambiente escolar, também no intuito de minimizar os impactos do isolamento social, as aulas remotas e diversas outras ações[iv] passaram a ser implementadas pelo país.
Em consequência disso, os Conselhos Estaduais e Municipais de Educação emitiram resoluções e pareceres orientativos para as instituições de ensino pertencentes aos seus respectivos sistemas sobre a suspensão de atividades e reorganização do calendário escolar, com o uso de atividades não presenciais, ou seja, com adoção de modalidade remota[v].
Cabe ressaltar que o CNE, no parecer n. 05/2020, enfatiza que as atividades remotas não são mera substituição das aulas presenciais, mas são “práticas pedagógicas mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação que possibilitem o desenvolvimento de objetivos de aprendizagem e habilidades”.
No Brasil no momento de implementação das aulas on-line ficaram muito claras as desigualdades sociais e econômicas da população, bem como a precariedade do sistema educacional.
Apesar da atividade on-line ser uma modalidade interativa valiosa, pressupõe infraestrutura tecnológica, ou seja, acesso a equipamentos informáticos e conexão. Da mesma forma, aspectos como local adequado para estudo, professores com habilidades técnicas e pedagógicas são necessários.
Mas estes pressupostos e aspectos não foram levados em consideração na implementação a curto prazo das aulas remotas.
Tem-se assim que a tecnologia proporciona novas condições de educação, informação e comunicação, mas as estratégias que foram implementadas no país que envolvem tecnologia também acabaram por aumentar as desigualdades de oportunidades e não levaram em consideração as pessoas com deficiências.
Desta forma, consigna-se que, para os alunos da educação especial, os desafios e perdas foram infinitamente maiores. Neste contexto de contrastes e desigualdades existentes entre estabelecimentos de ensinos, alunos e famílias, como garantir efetivamente o direito à educação aos alunos que apresentam alguma forma de deficiência?
Ainda no Parecer n. 05/2020 do CNE, alguns procedimentos foram elencados para implementação do sistema remoto de aulas aos alunos submetidos a regimes especiais de ensino, entre os quais, os alunos que apresentam altas habilidades/superdotação, deficiência e Transtorno do Espectro Autista (TEA), atendidos pela modalidade de Educação Especial, são eles:
“As atividades pedagógicas não presenciais, mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação, adotarão medidas de acessibilidade igualmente garantidas, enquanto perdurar a impossibilidade de atividades escolares presenciais na unidade educacional da educação básica e superior onde estejam matriculados. Considerando que os sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios yêm a liberdade de organização e poder regulatório próprio, devem buscar e assegurar medidas locais que garantam a oferta de serviços, recursos e estratégias para que o atendimento dos estudantes da educação especial ocorra com padrão de qualidade. O Atendimento Educacional Especializado (AEE) deve também ser garantido no período de emergência, mobilizado e orientado por professores regentes e especializados, em articulação com as famílias para a organização das atividades pedagógicas não presenciais a serem realizadas. Os professores do AEE atuarão com os professores regentes em rede, articulados com a equipe escolar, desempenhando suas funções na adequação de materiais, provimento de orientações específicas às famílias e apoios necessários. Eles também deverão dar suporte às escolas na elaboração de planos de estudo individualizados, segundo a singularidade dos alunos, a serem disponibilizados e articulados com as famílias. No caso de estudantes matriculados em instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, o atendimento educacional especializado deverá ser realizado pelos profissionais responsáveis no âmbito da escola. Algumas situações requerem ações mais específicas por parte da instituição escolar, como nos casos de acessibilidade sociolinguística aos estudantes surdos usuários da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), acessibilidade à comunicação e informação para os estudantes com deficiência visual e surdocegueira, no uso de códigos e linguagens específicas, entre outros recursos que atendam àqueles que apresentem comprometimentos nas áreas de comunicação e interação. Vale ressaltar que as orientações gerais direcionadas aos diversos níveis de ensino, presentes neste documento, também se aplicam às especificidades do atendimento dos estudantes da Educação Especial, modalidade transversal a todos os níveis e modalidades de educação, como previsto na LDB.”[vi]
Mas a realidade é diferente, vez que as pessoas com deficiência sempre encontraram – e ainda encontram -, barreiras ao acesso à educação no Brasil.
A educação é um direito fundamental de natureza social, previsto na Constituição Federal[vii], em seus artigos 6º, 205, 206[viii], 208 e 227, se direciona pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso, sendo, portanto, obrigação do Estado fornecê-la com igualdade de condições para o acesso e a permanência de todas as pessoas, inclusive das pessoas com deficiência, que deverão receber atendimento especializado.
O Brasil, por meio do Decreto n.º 6.949 de 25 de agosto de 2009[ix], internalizou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status de emenda constitucional, garantindo um sistema educacional inclusivo em todos os níveis.
Nesse sentido, a Lei nº 13.146/2015 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI)[x], também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, incumbiu especificamente ao Poder Público assegurar um sistema educacional completo às pessoas com deficiência desde a estrutura física até a adoção de práticas pedagógicas inclusivas e profissionais qualificados para prestar atendimento de acordo com as suas necessidades.
Portanto, não basta apenas facilitar o ingresso da pessoa com a escola, é preciso fornecer a ela todos os meios necessários para a sua permanência e seu desenvolvimento em iguais condições com as demais pessoas sem deficiência.
O acesso à educação deve ser igualitário e não deve a pessoa com deficiência, em razão de sua condição, sofrer qualquer forma de distinção, restrição ou exclusão, ou ter impedido, prejudicado ou anulado o reconhecimento ou o exercício dos seus direitos, incluindo-se neste universo, a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas sob pena de se evidenciar discriminação.[xi]
Especificamente em relação às pessoas com deficiência cegas, surdocegas e surdas, a educação inclusiva vai além de ofertar o acesso dos alunos às escolas, pois a comunicação e a interação com o outro são fundamentais para o processo de desenvolvimento.
No caso, em relação aos surdos, com perda auditiva leve ou moderada, a comunicação ocorre com auxílio do profissional Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – Libras, o qual faz a mediação entre o aluno e o professor, no momento da aula, explicando a esse aluno o conteúdo ministrado na sua língua natural, e dando voz a ele quando precisar se comunicar com o professor ouvinte.
Os indivíduos surdocegos necessitam do acompanhamento de Guia-Intérprete para se comunicarem, para compreenderem o que está acontecendo ao seu redor e para se desenvolverem. Além disso, é necessário que o professor tenha conhecimento a respeito da surdocegueira para que, juntamente com o Guia-Intérprete, consiga alcançar resultados satisfatórios no processo educacional desse aluno.
No caso de cegos e pessoas com baixa visão, é indispensável que o professor tenha domínio do Sistema Braille e conhecimento a respeito das dificuldades enfrentadas pelo aluno, para que sejam direcionados materiais adequados ao seu desenvolvimento.
Com a propagação do coronavírus em território brasileiro, e com a implementação das aulas remotas por diversas escolas e universidades, as condições observadas anteriormente relativas à acessibilidade não foram observadas, tanto na rede pública quanto na particular. Muitos alunos com deficiência enfrentam barreiras no seu aprendizado, seja com o material em Braille que não foi disponibilizado, seja com o Intérprete que não está presente no momento da aula on-line ou na plataforma digital para fazer a mediação entre aluno e professor.
As pessoas com deficiência devem ter acessibilidade no momento em que a aula está acontecendo, para que possam interagir com os demais colegas e professores, possam sanar as dúvidas que surgem em determinados assuntos, no mesmo instante, ou para que possam participar das discussões pertinentes ao que está sendo ministrado.
As barreiras precisam ser eliminadas com urgência, caso contrário, evidencia-se patente violação aos direitos da pessoa com deficiência e discriminação que precisam ser sanados.
Na realidade, com a pandemia, a invisibilidade da precariedade da educação especial se tornou ainda mais visível. Mesmo diante de décadas de lutas existe, ainda nos dias de hoje, limitações impostas às pessoas com deficiência que as impedem de ter acessibilidade e ter “condições que lhes permitiriam desfrutar da sociedade como qualquer outra pessoa”.[xii]
A pandemia não pode ser utilizada como justificativa para perda de direitos da pessoa com deficiência nem como justificativa para a discriminação em relação ao acesso à educação da pessoa com deficiência, não se pode vislumbrar retrocessos.
Desta forma, ações devem ser desenvolvidas para minimizar o impacto educacional do Covid-19 (coronavírus) ampliando suporte aos alunos da educação especial através de meios alternativos de ensino.
No Brasil até o momento não existe previsão de total retorno das aulas presenciais. Mesmo que na atualidade realidade brasileira seja impossível criar de imediato infraestrutura de conectividade e fornecer dispositivos e acessibilidade a todos os alunos para a educação digial, urge a necessidade em buscar soluções inovadoras para melhorar o aprendizado e inclusão dos alunos, em particular, daqueles que possuem algum tipo de deficiência, vez que estes terão perdas maiores e mais graves.
[i] Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) milhões de estudantes estão sem aulas com o fechamento total ou parcial de escolas e universidades em mais de 150 países devido à pandemia do coronavírus
[ii] Tal Portaria recebeu ajustes e acréscimos por meio das Portarias n os 345, de 19 de março de 2020, e 356, de 20 de março de 2020.
[iii] BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP n. 05/2020 de 28 de abril de 2020. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=145011-pcp005-20&category_slug=marco-2020-pdf&Itemid=30192>. Acesso em 14 mai 2020.
[iv] Diversas outras ações estão sendo realizadas pelo Ministério da Educação para mitigar os impactos da pandemia na educação, entre elas, destinação dos alimentos da merenda escolar diretamente aos pais ou responsáveis dos estudantes, reforço em materiais de higiene nas escolas, ampliação de recursos tecnológicos para ensino à distância, autorização para que defesas de teses e dissertações de Mestrado e Doutorado sejam realizadas por meio virtual.
[v] Observa-se que a modalidade de Educação a Distância (EAD) já estava previstas pelo Decreto n. 9.057/2017 e na Portaria Normativa do Ministério da Educação n. 2.117/2019, com disposições que expõem a competência das autoridades dos sistemas de ensino federal, estaduais, municipais e distrital para autorizar a realização das atividades a distância. Da mesma forma, a LDB dispõe em seus artigos a oferta de Educação a distância para o ensino fundamental, médio e em todas as modalidades de ensino.
[vi] BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP n. 05/2020 de 28 de abril de 2020. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=145011-pcp005-20&category_slug=marco-2020-pdf&Itemid=30192>. Acesso em 14 mai 2020.
[vii] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 16 mai 2020.
[viii] A Constituição Federal (CF) preleciona no artigo 6º que a educação é um direito social. O artigo 205 da CFl indica que a educação é direito de todos e em complementação, o artigo 206 da CF dispõe que o ensino deve ser ministrado com igualdade de condições para o acesso e permanência na escola com garantia de padrão de qualidade.
[ix] BRASIL. Decreto n.º 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em 17 mai 2020.
[x] BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em 15 mai 2020.
[xi] Previsão do artigo 4. § 1º da Lei brasileira de Inclusão (LBI).
[xii] SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. 2020. Disponível em: <https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/89207>. Acesso em 16 mai. 2020.
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