O SOFTWARE LIVRE COMO INSTRUMENTO DE COMBATE A PANDEMIA DE COVID-10

Luccas Abraão de Paiva Vidal – Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Paraná. Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do GEDAI/UFPR.

Pedro Henrique Carvalho da Costa – Mestrando e graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

Revisão: Lukas Ruthes Gonçalves

A situação global de enfrentamento a pandemia de COVID-19

A atual pandemia de COVID-19, que progride pelo mundo vorazmente desde dezembro de 2019, expôs diversas fragilidades do sistema global, seja em relação à maneira como os seres humanos se relacionam com a natureza e seus bens, seja quanto às relações interpessoais, que foram sensivelmente afetadas pela pandemia.

Yuval Noah Harari, em artigo intitulado “Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade” [1], defende que não há uma liderança clara nos esforços contra o coronavírus, estando os Estados atuando de forma isolada e diferente. As verdadeiras ferramentas contra a situação atual, para o autor, são a cooperação entre os agentes, a solidariedade global e informação científica confiável. Num mundo globalizado, não é possível a atuação independente e descoordenada; o colapso de um Estado trará prejuízos em à outras sociedades e sentidos em escala mundial.

Uma das formas mais comuns de enfrentamento do COVID-19 tem sido a imposição de quarentenas e lockdowns, de forma a diminuir a circulação de pessoas durante um determinado período, para diminuir a transmissão do vírus e evitar uma sobrecarga dos sistemas públicos de saúde. Em 03 de abril de 2020, estimou-se que 3.9 bilhões de pessoas estavam sob algum tipo de restrição de circulação [2].

No âmbito da educação, a UNESCO estima que aproximadamente 90% dos estudantes do mundo foram afetados por conta do fechamento de escolas e instituições de ensino [3].

Apenas a quarentena, contudo, não é suficiente no enfrentamento ao coronavírus.

É necessário que sejam pensadas formas criativas de combate à pandemia, de forma a integrar a maior quantidade de pessoas, num esforço de democratização das formas de combate. É nesse debate que se encontra o uso de softwares contra a COVID-19.

O software e sua tutela jurídica no direito brasileiro

A legislação brasileira de propriedade intelectual e industrial data da década de 1990, marcado pelas Leis nº 9.279/1996 (que trata dos direitos de propriedade industrial), 9.609/1998 (que trata da proteção aos softwares) e 9.610 (que trata dos direitos autorais).

Sérgio Staut [4] nota que a sociedade passa por um processo de surgimento de novas tecnologias e aceleração de sua produção em nível exponencial, mas que o direito autoral permaneceu aquém a essas discussões, ainda se valorizando teorizações dos séculos XIX e XX, a despeito de inovações artísticas, científicas e literárias.

A simples atualização das normas, mediante a edição de novas leis de propriedade intelectual e industrial, contudo, pode trazer o engessamento do direito, tornando-o imediatamente datado e desatualizado. Como sugestão, o autor traz a elaboração de normativas mais abertas e dúcteis, “investindo mais em ‘marcos legislativos / normativos’ (que podem se adaptar melhor à realidade a ser regulamentada, ainda que tragam um risco maior a uma certa ideia de segurança)”.

Apesar de desatualizada, a Lei do Software ainda segue plenamente aplicável, devendo ser o ponto de partida para discussões jurídicas a respeito de software.

O programa de computador é definido como “a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.” [5]

Na sequência, a lei determina que a proteção aos programas de computadores será a mesma que concedida pela legislação de direitos autorais [6]. Como a Lei de Direitos Autorais dispõe que a proteção aos direitos de autores independe de registro [7], ela se aplica à proteção dos criadores de softwares, aos quais serão outorgados os direitos patrimoniais inerentes a sua obra [8].

Um dos direitos garantidos pela legislação é a exclusividade de reprodução da obra, visto que é necessária a obtenção de autorização do autor para a reprodução parcial ou integral da obra [9], bem como uma vedação expressa de reprodução de obras (que não sejam pertencentes ao domínio público) sem a autorização do autor [10].

Ainda dentro dos direitos do autor, destaca-se a possibilidade que este possui para colocar a obra à disposição do público da forma como desejar, seja de forma gratuita ou onerosa [11]. É nessa faculdade que se encontra o software livre e suas possibilidades de utilização.

O software livre como forma de ampliação do acesso ao conhecimento

A princípio há que se ter claro que para que um software seja considerado livre, ele não necessariamente será gratuito.

O que diferencia as duas figuras é que, no software livre, seu código-fonte é livre e disponível para quaisquer pessoas que tenham interesse em utilizá-lo e modificá-lo [12].

O autor, proprietário do software, possui o direito de divulgar a quem quiser suas particularidades, seus códigos e detalhes técnicos, sendo que qualquer pessoa pode fazer uso dele, em sua forma original ou mediante modificações. O exemplo mais conhecido de software livre é o sistema operacional Linux, cujos código estão disponíveis na rede mundial de computadores para qualquer pessoa acessar e modificar como bem entender.

Sergio Amadeu da Silveira destaca a importância do uso de softwares livres para o compartilhamento do conhecimento, com uma capacidade maior de inovação quando comparado ao software proprietário, além de permitir uma economia referente ao gasto que se teria com royalties. Outras vantagens encontradas são um incentivo a usuários para encontrar soluções criativas para problemas que surjam, adequados a cada caso específico, e, no caso de uso pelo Estado, uma redução de custos que seriam utilizados para a obtenção de licenças [13].

Ainda, problemas encontrados tendem a ser resolvidos mais rapidamente em softwares de acesso livre, com toda uma comunidade de usuários voltados para resolver o empecilho encontrado. Uma menor dependência para com o criador do programa também é vista com uma vantagem ao software proprietário [14].

Compreendida a importância do software livre, passa-se agora a demonstrar como ele pode ser uma arma efetiva no combate à atual pandemia.

O software livre como ferramenta de cooperação no combate a pandemia de  COVID-19

Os softwares livres, também chamados de open-source, já vinham ganhando popularidade desde os anos 2000 entre os profissionais que trabalham na área de programação, tecnologia e informação. Isso culminou no chamado free software movement, um movimento não centralizado de pessoas, empresas e grupos interessados no desenvolvimento e propagação de sistemas de código, agora focados também em cooperar na elaboração de soluções a pandemia.[15]

Uma das líderes neste movimento é a organização sem fins lucrativos intitulada Free Software Foundation (FST), cujo foco é o trabalho no sistema operacional GNU que eles mesmo vem desenvolvendo e aperfeiçoando desde sua fundação em meados dos anos 90, além de patrocinar estudos e desenvolvimentos de sistemas que consideram de alta prioridade e realizar campanhas contra a restrição de direitos e licenças de softwares.

Tendo como uma de suas missões a disseminação dos softwares livres em prol da sociedade, a FST Europe, uma das subsidiárias da empresa, acompanha os hackathons virtuais (encontros de programadores, designers, e cientistas da computação para trocas de informação e softwares) que vem ocorrendo com o foco de combate ao Covid-19, dos quais destaca como mais importantes aquelas que tem como uma das prioridades o código aberto, citando como exemplo a WirVsVirus que ocorreu entre 20 e 22 de março e contou com perto de 80 milhões de pessoas.[16]

Segundo a empresa, podemos perceber que o software livre tem uma importância fundamental para aliviar este momento de crise, desde a impressão 3D de ventiladores até o acompanhamento de surtos localizados, ou ainda a organização solidaria dentro de comunidades.

O grande auxílio dos softwares livres é garantir a cooperação global para desenvolvimento de códigos que podem ser utilizados e aplicados por todos, ao invés de sistemas localizados que dificultam o manuseio e utilização por pessoas que não tem acesso ou conhecimento da linguagem operacional.[17]

O desenvolvimento e trabalho na área open-source no presente momento tem auxiliado tanto no campo da medicina, como na educação, controle e gerenciamento de dados.

A área médica e laboratorial já contava com softwares livres tem algum tempo. Um exemplo seria a utilização de programas capazes de melhorar a qualidade de foco e análises fotomicrográficas, como o Combine Z 5 e Picolay, que possuem a vantagem de serem livres de custo e adaptabilidade e integração as necessidades do usuário através de seu código aberto.[18] O complemento a estes serviços também é o licenciamento de produtos hospitalares como o protótipo de respirador “VITAL”, elaborado pela NASA em fins de abril, que pode ser montado rapidamente, utilizando menos peças e com menor custo.[19] Isso se complementa a softwares e arquivos doados para trabalho em designs e produção de aparelhos hospitalares, como mascaras, faceshields, peças de respiradores, etc., que possam usufruir da impressão 3D.[20]

A educação passou por mudanças bruscas com a pandemia, já que as instituições de ensino tiveram suas salas fechadas para evitar a disseminação do vírus.

Apesar de ter sido constatado pela Organização das Nações Unidas que, globalmente, metade dos estudantes fora das salas de aula não tem acesso a um computador (cerca de 830 milhões de alunos), e que mais de 40% não possuem acesso à internet, iniciativas virtuais de ensino a distância foram adotadas em diversos países, junto com programas que buscam garantir maior igualdade no acesso ao mundo digital.[21]

Esse é o caso dos Estados Unidos, onde a Business and Technology University da Georgia passou a utilizar o sistema do Google chamado G Suite for Education para continuidade das atividades letivas. Mesmo garantindo integração com sistemas de e-mail, calendário, entrega de atividades online e encontro da turma por vídeo conferência, é constatada a carência de gravação dos encontros.

Para tal se anda utilizando o software de streaming e gravações chamado Open Broadcaster Software (OBS), que é gratuito, possui código aberto e também é cross-platform.[22]

Esses sistemas abertos também são muitas vezes escolhidos por universidades por não terem custo de licença e poderem ser modificados atendendo as necessidades próprias da instituição, como é o caso do Linux.

Os softwares livres também podem auxiliar a crescente necessidade de gerenciamento de dados relativos ao COVID-19. Um bom exemplo seria o Servicenow, software de código aberto que recentemente lançou aplicativos novos buscando auxiliar agências governamentais e empresas a terem alcance de emergências, controlar a exposição e fomentar a o auto reporte de infecções.

Um dos parceiros do Servicenow é o estado americano de Washington, que criaram um aplicativo na plataforma intitulado Emergency Response Operations, que servia tanto para elaboração rápida de uma resposta ao surto na região, acompanhando em tempo real e mitigando os efeitos da COVID-19 no estado. O app agora foi disponibilizado pelo Departamento de Saúde norte americano a todas as demais entidades governamentais, livre de custo.[23]

Há também outros softwares como o Our World in Data COVID-19, que busca recolher dados relacionados ao vírus, sendo atualizado diariamente com informações, pesquisas, casos, mortes e testes, que podem ser facilmente acompanhados por seus usuários.

Além de ser completamente open-source, mantém a pesquisa, visualização e utilização dos dados livre para todos e para todos os propósitos, disponibilizando suas fontes.[24]

Por ser um dos mecanismos de divulgação de informação é de confiança de pesquisadores e meios midiáticos além de ser utilizado também no ensino.

Dessa forma, é possível notar que até mesmo um software acaba recebendo mais de um tipo de utilização, não sendo restrito a apenas um campo, ou até mesmo a uma localidade.

Estas são algumas das características que tornam estes programas tão atrativos nos dias de hoje. Apesar de não serem muito comentados e divulgados nos meios de comunicação de massa, ou dentro das próprias discussões dentro de um âmbito jurídico, possuem muito a oferecer e pavimentar um caminho para maior liberdade e consciência dentro do mundo virtual, provando seu valor em momentos como a pandemia de COVID-19.

O software livre como instrumento de combate a pandemia

A partir desta análise sobre a questão dos softwares livres, podemos perceber como eles fazem parte integral na vida interligada e tecnológica do século XXI.

Além de ser defendido dentro da área da programação, tecnologia e informação e ciência da computação como forma de garantir a liberdade de acesso a programas, acabam gerando uma relação recíproca em que ajudam seus usuários, e os mesmos são responsáveis por desenvolver suas funções e sistemas para melhor se encaixar com as situações e locais em que são utilizados.

Num momento em que o mundo procura soluções e formas de contornar a crise gerada pela doença que avança impetuosamente contra a população, os softwares livres representam alternativas aos programas mais mainstream, por terem algumas características muito importantes: o código aberto para facilitar sua modificação e desenvolvimento os tornam opções com maior acessibilidade em várias partes do mundo, livre de custos adicionais, e capazes de utilizá-los para melhor servir o usuário da melhor maneira possível.

Um dos grandes sinais de que os softwares livres estão ganhando maior importância são grandes empresas como a própria Google abrindo o código de alguns de seus programas, e até mesmo outros sistemas licenciados adotando cada vez mais liberdades nos seus sistemas.

Presentes na administração, divulgação da informação, auxiliares de pesquisadores, engenheiros, médicos e designers, têm importante papel tanto na luta contra a pandemia de COVID-19 quanto no auxílio e manutenção da sociedade que se adapta ao “novo normal” em distanciamento, recorrendo aos meios virtuais.

Nos resta manter atenção às notícias e novidades relativas ao campo dos softwares open-source, já que a cada dia são lançados e desenvolvidos novos programas, sendo possivelmente grandes parceiros na resposta à crise global.

REFERÊNCIAS:

[1] HARARI, Yuval Noah. Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Ebook.

[2] Disponível em : https://www.euronews.com/2020/04/02/coronavirus-in-europe-spain-s-death-toll-hits-10-000-after-record-950-new-deaths-in-24-hou. Acesso em 03 de maio de 2020.

[3]Disponível em :  https://en.unesco.org/covid19/educationresponse. Acesso em 03 de maio de 2020.

[4] STAUT JÚNIOR, Sérgio Said. Aceleração Tecnológica, Direitos Autorais e a Algumas Reflexões sobre as Fontes do Direito. In: XII Congresso de Direito de Autor e Interesse Público. Anais. Capítulo I (Direito de Autor e Inovação). p. 27-38. Disponível em: https://bit.ly/2jXohL4. Acesso em: 03 de maio de 2020.

[5] Artigo 1º, Lei nº 9.609/1998.

[6] Artigo 2º, Lei nº 9.609/1998.

[7] Artigo 18, Lei nº 9.610/1998. Dispositivo similar é encontrado na Lei do Software, em seu artigo 2º, § 3º.

[8] A Lei do Software expressamente exclui a proteção referente a direitos de natureza moral, em seu artigo 2º, § 1º.

[9] Artigo 29, I, Lei nº 9.610/1998.

[10] Artigo 33, Lei nº 9.610/1998.

[11] Artigo 30, Lei nº 9.610/1998.

[12] GARCIA, Mauro Neves; Santos, S. M. B. dos; Pereira, R S; ROSSI, G. B. Software Livre em Relação ao Software Proprietário: Aspectos Favoráveis. Gestão & Regionalidade, v. 26, p. 106-120, 2010.

[13] SILVEIRA, Sérgio Amadeu. Inclusão digital, software livre e globalização contra-hegemônica. In: SILVEIRA, Sérgio Amadeu; CASSINO, João. (Org.). Software Livre e Inclusão Digital. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003, v. 1, p. 17-47.

[14] GARCIA, Mauro Neves; Santos, S. M. B. dos; Pereira, R S; ROSSI, G. B. Software…

[15]Disponível em :  https://www.fsf.org/about/. Acesso 12 de maio de 2020.

[16]Disponível em :   https://wirvsvirushackathon.org/?lang=en. Acesso 12 de maio de 2020.

[17] Disponível em :  https://fsfe.org/news/2020/news-20200408-01.en.html. Acesso em 12 de maio de 2020.

[18] PIPER, Jörg. Use of software to enhance depth of field and improve focus in photomicrography. Microscopy and Analysis, v. 22(3), p. 15-19, 2013.

[19] Disponível em :  https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2020/04/nasa-cria-respirador-barato-e-com-licenca-gratuita-para-combater-covid-19.html Acesso em 12 de maio de 2020.

[20] Disponível em : https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-05/projeto-de-respirador-mecanico-usa-pecas-existentes-no-mercado Acesso em 12 de maio de 2020.

[21] https://news.un.org/en/story/2020/04/1062232 Acesso em 12 de maio de 2020.

[22] BASILAIA, G., DGEBUADZE, M., KANTARIA, M., CHOKHONELIDZE, G. Replacing the Classic Learning Form at Universities as an Immediate Response to the COVID-19 Virus Infection in Georgia. International Journal for Research in Applied Science & Engineering Technology, v.8(3), 2020.

[23] Disponível em: https://www.servicenow.com/company/media/press-room/servicenow-emergency-response-apps.html. Acesso em 12 de maio de 2020.

[24] Disponível em : https://ourworldindata.org/coronavirus-source-data. Acesso em 12 de maio de 2020.

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