Fanfictions e Direitos Autorais

BIBIANA BISCAIA VIRTUOSO
Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2020). Pós-graduanda em Direito Digital e Proteção de dados no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Pesquisadora no Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR.

GABRIELA CAROLINA DE ARAUJO
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora no Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR.

INTRODUÇÃO

Em 2015, o filme “Cinquenta Tons de Cinza” angariou 569,7 milhões de dólares em bilheteria. A arrecadação de mais de meio milhão de dólares pode ser descrita como um sucesso, principalmente considerando o “modesto” orçamento de 40 milhões de dólares para a sua realização e a classificação indicativa do filme, que tornou o público-alvo da produção muito reduzido.  

O filme em questão se baseia no livro homônimo de E. L. James, que surgiu por conta de outra saga de filmes e livros de sucesso: Crepúsculo. Mais do que mera inspiração no universo de vampiros, Cinquenta Tons de Cinza era uma fanfiction de Crepúsculo. E. L. James publicou a história originalmente sob o título “Master of The Universe”, por meio da qual recriou elementos do romance vivido entre Bella e Edward, casal protagonista da saga Crepúsculo. 

Cinquenta Tons de Cinza não é exatamente um caso isolado, outras fanfictions também se tornaram quase tão bem sucedidas quanto o conteúdo que as inspiraram. Outro exemplo é a série de livros que também foram adaptadas para o audiovisual “Instrumentos Mortais”, que, segundo algumas fontes, foi escrita originalmente como uma fanfiction da saga Harry Potter. Apesar do sucesso que algumas fanfictions fazem e a evolução destas em materiais aparentemente originais, há uma série de questionamentos envolvendo os direitos autorais que envolvem tais publicações. 

Fanfictions podem ser descritas como narrativas criativas baseadas em outras obras já existentes, em que fãs normalmente recriam, acrescentam e imaginam por outra perspectiva a história contada na obra original. 

Tais publicações podem ter aparecido décadas atrás, no entanto apenas com o boom da internet dos últimos anos é que essas histórias passaram a ser popularizadas. A popularização de obras da cultura pop desencadeou, igualmente, uma disseminação das histórias contadas por fãs. 

O enredo das fanfictions é extremamente variado, podendo, em alguns casos, apenas se utilizar do universo ficcional criado pelo autor para contar uma história com personagens diferentes ou também continuar uma história para além do ponto em que o autor resolveu concluir sua narrativa. 

A popularidade dessas histórias alternativas se explica pela própria popularidade das obras que as inspiram, em que, na ausência de material novo original de uma obra, ou no caso de seu encerramento, as fanfictions estão ali para suprir o desejo dos fãs em continuar vivenciando aquele universo. 

 

AS FANFICTIONS E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS

Num primeiro momento, poderíamos dizer que as fanfictions são inofensivas. Apesar da possibilidade em violar direitos autorais, tendo em vista que de maneira geral os escritores de fanfictions não possuem permissão expressa dos autores para fazerem uso de suas obras, boa parte das fanfictions são postadas anonimamente e, inicialmente, sem nenhum retorno financeiro, sendo, de maneira ampla, apenas uma forma do escritor, que é fã da obra, compartilhar aquela narrativa com outros fãs.

Além disso, em muitas fanfictions publicadas online, os escritores apontam que aquela história é completamente baseada na obra de terceiro, havendo a preocupação em oferecer os devidos créditos a quem é o autor do material original, deixando claro que aquela história não é proveniente de uma criação completamente autoral. Dessa maneira, poderia ser entendido que apesar da violação de direitos autorais que incorrem nas fanfictions, a existência desses materiais não seria tão nociva.

No entanto, é importante considerar que cabe aos autores o protagonismo na gestão de suas obras e que pertence a eles o controle criativo sobre aquele universo, principalmente quando falamos de narrativas escritas sem a ciência dos autores. Apesar do público em geral saber que uma fanfiction não é material oficial de uma obra, é possível que em muito seja desvirtuada a obra criada.

A liberdade de criação das fanfictions é praticamente ilimitada, vez que em larga escala são postadas sob o nome de usuários anônimos, o que permite que os escritores dessas histórias sintam a liberdade de criarem em cima das obras originais. Isto pode levar a casos em que tais narrativas se tornem ofensivas ao material original, podendo o autor se sentir lesado ao ver sua obra vinculada a conteúdos que ele não aprova, além de que, por vezes, as escolhas narrativas feitas pelo criador são, muitas vezes, desfeitas pelos escritores das fanfictions, o que também pode ser ofensivo ao autor. 

Logo, relembra-se que, além dos direitos patrimoniais que um autor possui por sua obra, ele também é titular de direitos morais sobre suas criações, que resguardam, além de outros elementos, o direito do autor em manter a integridade de sua obra, conforme disposto pelo artigo 24, IV, da Lei de Direitos Autorais. 

Além da hipótese de violação de direitos morais do autor, as fanfictions também poderiam ser entendidas como uma afronta aos direitos patrimoniais que o criador da obra possui, tendo em vista que, salvo permissão do autor, cabe a ele qualquer rendimento proveniente de sua criação. Apesar de boa parte das fanfictions não serem criadas com o intuito de obter lucro, há casos, conforme apontado inicialmente, em que tais publicações tomam outras proporções que desembocam no ganho econômico.

Retomando-se o exemplo da saga “Cinquenta Tons de Cinza”, apesar de o livro e os filmes extremamente rentáveis não violarem direitos autorais em si, pois para a publicação do livro foram retirados os elementos que identificam a obra à saga “Crepúsculo”, é possível relacionar todo o lucro obtido à existência do universo de “Crepúsculo”, tendo em conta que os livros publicados tinham origem em uma fanfiction da obra. Sendo assim, não é inimaginável pensar que, em alguns casos, autores podem se sentir lesados também sob uma perspectiva patrimonial, tendo em vista que, mesmo indiretamente, suas obras geraram rendimento econômico dos quais eles não terão participação.

Em vista disso, alguns autores já manifestaram que consideram as fanfictions algo inofensivo. No caso de J.K. Rowling, autora de Harry Potter, um dos universos mais explorados pelas fanfictions, a escritora apontou que não se importa que os fãs criem suas próprias histórias com base em sua criação, desde que elas não sejam ofensivas e não tenham fins lucrativos (JACOBS, 2021).  

 

O FAIR USE COMO EXCEÇÃO AOS DIREITOS AUTORAIS 

Logo, nota-se que há conflito no que diz respeito à gestão dos direitos autorais e as fanfictions, tendo em conta que essas criações podem tornar-se lesivas aos autores, mas que, a grande maioria, apesar de não ter consentimento expresso do autor para sua existência, não causa prejuízo substancial aos autores, pois não ferem a obra e não possuem fins lucrativos. 

Partindo dessa perspectiva, há a tese de que as fanfictions poderiam se enquadrar dentro da lógica do fair use, que é um conceito existente dentro do direito dos Estados Unidos, por meio do qual se permite o uso de obras protegidas por direitos autorais livremente.

O fair use, em tradução literal, poderia ser explicado como “uso justo”, ou seja, se o uso tem uma causa “justa” não é necessária permissão prévia, pois entende-se que em algumas situações o uso livre não fere os direitos autorais. 

O fair use é subjetivo, e aplica-se de acordo com cada caso. No entanto, há algumas diretrizes para a sua aplicação, sendo uma delas o entendimento de que a reprodução deve acrescentar algo substancial à obra original. Outro ponto seria que o uso da obra deve observar a natureza dessa nova criação, que, no geral, não deveria violar direitos autorais. 

Ainda, outra baliza para a aplicação do fair use é a quantidade de obra original utilizada, como forma de garantir que a nova obra não seja apenas mera reprodução indevida. Algumas vezes, somente alguns elementos servem de base para a criação de outra obra, mas, em outros casos, grande parte da obra pode ser utilizada. 

Por fim, também deve ser avaliado o efeito econômico causado, de forma a observar se o uso não irá incorrer em desvalorização da obra ou causará outros impactos econômicos negativos. 

Ressalta-se que, geralmente, a aplicação do fair use não segue todos esses critérios taxativamente, ocorrendo normalmente uma avaliação de cada caso. 

Com isso, apesar deste não ser ainda um entendimento consolidado, poderia ser avaliado que, para alguns casos e a depender do entendimento a ser adotado, o fair use se aplicaria às fanfictions, podendo existir a limitação dos direitos autorais em cenários que o uso da obra original segue as diretrizes elencadas, o que poderia ocorrer, pois conforme mencionado, a maioria das fanfictions não é exatamente nociva à obra original, tendo em vista muitos autores manifestaram apoio à existência delas. 

 

CONCLUSÃO 

A gestão dos direitos autorais no universo das fanfictions ainda é uma discussão que não está terminada. São diversos os cenários que podemos encontrar, o que torna importante pensar no assunto de maneira geral, mas avaliar cada caso em particular para análises mais profundas. 

É sempre essencial que os autores sejam os protagonistas de suas criações, são eles os donos das obras e têm o poder sobre elas, devendo a integridade de suas criações serem respeitadas, e, caso o autor verifique qualquer uso indevido, a sua vontade deve prevalecer. Contudo, é passível de discussão a total ilegalidade das fanfictions, pois conforme mencionado anteriormente, ainda que possam incorrer em lesão aos direitos autorais para além do fato de se utilizarem de outra obra como base, em muitos casos as histórias não possuem intuito de ferir a obra original. 

Além disso, cabe destacar que são milhares as fanfictions publicadas online, sendo a maioria de autoria desconhecida, o que torna difícil um controle rigoroso sobre tais publicações, tendo em vista que são inúmeras as formas para se publicar um conteúdo na internet. Igualmente, cabe avaliar que as fanfictions são criadas por fãs de uma obra, que, de maneira ampla, não buscam causar qualquer prejuízo ao autor ou à obra, sendo as fanfictions uma forma de fazerem parte daquele universo e de o explorarem ainda mais.

Partindo de uma perspectiva cultural, é possível defender, guardadas devidas proporções, que as fanfictions são mais uma forma de interação cultural que uma obra possui com a sociedade, assim como as discussões em fóruns e criação de fanpages.Por outro lado, os direitos de um autor sobre a sua obra devem ser sempre respeitados, e que, principalmente em casos de lesão patrimonial e moral, as fanfictions como interação cultural deixam de ser inofensivas.

Com isso, conclui-se que há espaço para a discussão sobre a possibilidade de se sopesar direitos quando falamos sobre as fanfictions e a gestão de direitos autorais, ressaltando-se que a análise de cada caso em particular é de extrema importância. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARROS, C. E. C. Fanfiction, obra derivada, novas tecnologias e estado cultural. PIDCC: Revista em propriedade intelectual direito contemporâneo, Aracaju, SE, v. 11, n. 1, p. 156-176, 2017. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6749120>. Acesso em 24/05/2022.

BLECHA, M. M. Z; SILVEIRA, D. B. FANFICTION: UM PLÁGIO A SER LEGALIZADO. Revista Juris UniToledo, Araçatuba, SP, v. 02, n. 03, p. 181-194, jul./set. 2017. Disponível em: <http://www.ojs.toledo.br/index.php/direito/article/view/2500>. Acesso em 24/05/2022.

JACOBS, M. Approve or Disapprove: What 8 Famous Authors Think Of Fanfiction. FanSided, jul. 2021. Disponível em: <https://winteriscoming.net/2021/07/04/8-famous-authors-think-fanfiction-george-rr-martin-anne-rice-jrr-tolkien/5/>. Acesso em 25/05/2022. 

PIRES, A. A. Fanfiction: O modelo autoral da escrita de ficção de fãs de produtos da indústria do entretenimento. 2021. 141 f. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias) – Unidade Anápolis de Ciências Socioeconômicas e Humanas, Universidade Estadual de Goiás, Anápolis, GO, 2021. Disponível em: <http://www.bdtd.ueg.br/handle/tede/597>. Acesso em 25/05/2022.

 

Veja também o nosso vídeo sobre Fanfics:
https://youtu.be/LVopUSgnS9Mhttps://youtu.be/LVopUSgnS9M

 

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