Órgãos públicos, domínio público e licenças públicas
Christiano Lacorte
Nestes tempos de tecnologias da informação e comunicação, e consequente ampliação do acesso às ferramentas de produção de conteúdo, tem se percebido o crescimento da criação, pelos órgãos da Administração Pública (municipal, estadual e federal), de obras contempladas pela proteção dos Direitos Autorais.
Cada vez mais órgãos da Administração criam programas de televisão, filmes, músicas, clipes, personagens, livros e fotografias, obras em geral relacionadas às atividades destes órgãos e que acabam por atrair o interesse da sociedade. Deve-se ressaltar que a produção do bem intelectual protegido se dá pela aplicação direta de dinheiro público, quer pela remuneração paga aos criadores, quer pela estrutura adquirida pelo órgão para dar suporte a criação, como a aquisição de equipamentos e insumos.
Importante frisar a questão da titularidade das obras produzidas em decorrência de contrato de trabalho, que não está contemplada na Lei 9.610/98. Assim existe um enorme hiato legislativo nesse tema, levando a incertezas quanto à definição acerca do detentor dos direitos patrimoniais das obras criadas, inclusive no âmbito da Administração Pública. Por essa razão tem sido freqüente a utilização de termos de cessão de direitos autorais patrimoniais, tanto por empresas particulares, quanto por órgãos da Administração. Para o contexto ora em análise, levam-se em consideração apenas aquelas obras cuja titularidade é inquestionavelmente pertencente à Administração Pública.
Diante desse cenário de ampliação da produção de obras no âmbito da Administração Pública, fica a pergunta se o tratamento concedido a esses bens intelectuais representa a melhor solução sob a ótica de retorno à sociedade do investimento realizado, ou seja, se os direitos de acesso e utilização dessas obras ficam facilitados em razão do investimento público realizado.
A Criação em Órgãos Públicos e o Domínio Público
Importante ressaltar que o tratamento protetivo diferenciado para as obras produzidas pela Administração foi preocupação histórica das legislações que tratavam da questão dos direitos autorais no Brasil, pelo menos desde o início do século XX. Tome-se, por exemplo, o Código Civil de 1916 (Lei 3.071/16), que em seu artigo 662 trazia previsão específica para obras publicadas pela Administração:
“CAPÍTULO VI DA PROPRIEDADE LITERÁRIA, CIENTÍFICA E ARTÍSTICA (…) Art. 661. Pertencem à União, aos Estados, ou aos Municípios: I – Os manuscritos de seus arquivos, bibliotecas e repartições. II – As obras encomendadas pelos respectivos governos, e publicadas à custa dos cofres públicos. Art. 662. As obras publicadas pelo Governo Federal, Estadual ou Municipal, não sendo atos públicos e documentos oficiais, caem, quinze anos depois da publicação, no domínio comum.”
Adiante, tem-se a Lei 5.988/73, primeira norma a tratar especificamente dos direitos autorais no Brasil, que trazia em seu artigo 46 disposição similar ao disposto no citado artigo 662 do Código Civil de 1916:
“CAPÍTULO III – Dos direitos patrimoniais do autor e de sua duração
(…) Art. 46. Protegem-se por 15 anos a contar, respectivamente, da publicação ou da reedição, as obras encomendadas pela União e pelos Estados, Municípios e Distrito Federal.”
Porém, qual o tratamento dado ao tema pela atual Lei de Direitos Autorais brasileira, a Lei 9.610/98? Nenhum. Não existe, diferentemente dos regramentos anteriores acerca de direitos autorais, qualquer menção a tratamento diferenciado para as obras cuja titularidade pertença a Administração Pública.
Portanto, desde o início da vigência da Lei 9.610/98, aplica-se às obras cuja titularidade pertence à Administração Pública a proteção geral prevista na norma, ou seja, de 70 anos contatos a partir de 1º de janeiro ao ano subsequente da morte do autor ou da publicação da obra, conforme o caso.
Ou seja, comparando com as normas anteriores, a atual Lei de Direitos Autorais restringiu o amplo acesso das obras cuja titularidade pertence à Administração Pública por 55 anos além do que se previa nos normativos anteriores, agravando, no nosso entender de forma desarrazoada, o acesso a essas obras.
Por essa razão, seria importante que o normativo de direitos autorais no Brasil voltasse a apresentar um tratamento diferenciado para as obras cuja titularidade pertença à Administração Pública, em qualquer de suas esferas, conferindo um período protetivo reduzido em relação à regra geral da proteção dos direitos autorais patrimoniais, ampliando o acesso e utilização dessas obras.
Por fim, cabe ressaltar que as obras cujo detentor dos direitos autorais patrimoniais seja a Administração Pública, e que foram publicadas até 1983, estão em domínio público, pois cumpriram os prazos de proteção estabelecidos nos diplomas aplicáveis e anteriormente citados, a saber, o Código Civil de 1916 e a Lei 5.988/73. Cabe agora à Administração, buscando efetivar as possibilidades oferecidas pelo instituto do domínio público, implementar os meios necessários para colocar as obras nessa condição à disposição da sociedade. Uma iniciativa nesse sentido e que deve ser mencionada, é o site www.dominiopublico.gov.br, tanto pelo pioneirismo quanto pela abrangência do conteúdo. Espera-se que a proposta presente nesse texto colabore com a ampliação do material colocado à disposição naquele sítio da Internet. Outra iniciativa que merece destaque é a Biblioteca Brasiliana USP (www.brasiliana.usp.br), pela importância e qualidade do acervo colocado à disposição da Sociedade.
A Criação em Órgãos Públicos e as Licenças Públicas
Ainda que venha a ser (re)incluída na nossa Lei de Direitos Autorais a previsão de um período protetivo menor para as obras cuja titularidade pertençam à Administração Pública, o que, como citado anteriormente, representaria um maior retorno à sociedade do investimento público realizado para a criação daquelas obras, ainda caberia uma questão: durante o período em que a obra não estivesse em domínio público, não poderiam existir mecanismos que facilitassem o acesso e o uso dessa criação?
Do mesmo modo que uma redução do prazo de proteção dos direitos autorais patrimoniais para obras pertencentes à Administração representaria um importante passo para o acesso a essas criações, seria importante também que se utilizassem meios que, antes de vencido o prazo de proteção, possibilitassem usos condicionados desses bens produzidos. Além de se ampliar o acesso, ainda se desoneraria determinadas situações de utilização dessas obras, tanto para o interessado, que tem de dar entrada em uma solicitação de autorização de uso, e aguardar – às vezes por um longo período – a resposta ao pedido, quanto para a Administração que, em geral, cria processos para a análise dos pedidos de autorização, que tramitam em diversas áreas dos órgãos em procedimentos que acabam também custando um valor elevado ao contribuinte.
Uma proposta seria a utilização de licenças públicas, a serem desenvolvidas de acordo com os interesses da Administração e da sociedade, de modo que alguns usos das obras sejam permitidos, desde que sejam observadas condições determinadas pela própria licença, situações em que não seriam necessárias as solicitações de autorização ao detentor dos direitos patrimoniais sobre a obra.
As licenças públicas têm sido utilizadas com bastante freqüência, grande parte em função de iniciativas como a do Software Livre e a do Código Aberto (ambas relacionadas a programas de computador), e a da organização Creative Commons, cujas licenças, que podem ser utilizadas para os mais diversos tipos de obras, têm sido adaptadas para a jurisdição de diversos países e cujos reflexos são bastante perceptíveis no mundo digital.
As licenças públicas podem representar, caso bem utilizadas, um importante mecanismo para aperfeiçoar o modelo de acesso aos bens intelectuais da Administração que ainda estão protegidos pela Lei de Direitos Autorais, e que, portanto, ainda não estão em domínio público, propiciando um melhor atendimento dos interesses da sociedade de acesso e uso das obras produzidas pela Administração.
A ampliação dos mecanismos de acesso às obras produzidas no âmbito da Administração Pública, quer seja por meio de redução do período da proteção dos direitos autorais patrimoniais, quer seja por meio do uso de licenças públicas, é tema pertinente ao momento atual de discussão do normativo brasileiro que trata dos direitos autorais.
Christiano Lacorte: Mestrando em Direito, Estado e Sociedade na UFSC, advogado, graduado em Direito e Ciências da Computação, com especialização em Tecnologias da Informação e extensão em Direito da Informática e Direitos Autorais.