Os Sistemas de Licenciamento Compulsório: mudanças na legislação no Brasil e no mundo.
Luize Liebsch Kestring – Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e pesquisadora do GEDAI
Diante do impacto global da Pandemia do COVID-19 na população mundial e das respostas presentes nos sistemas legais referentes a patentes, o artigo referenciado busca compreender a relação entre os regimes de proteção de propriedade intelectual – tanto em âmbito nacional quanto internacional – e as necessidades emergentes da população por acesso à saúde pública.
Inicialmente, é fundamental compreender a natureza da proteção da propriedade intelectual, especialmente no que se refere à salvaguarda das patentes. Em seguida, é essencial analisar como as patentes podem apresentar um obstáculo ao direito da população à saúde pública, porém, essa barreira pode ser mitigada por meio de instrumentos legais presentes nas legislações nacionais e em acordos internacionais. Exemplos desses instrumentos são as Licenças Compulsórias estipuladas na Lei 9.279/96 do Brasil e no Acordo TRIPS.
O CENÁRIO MUNDIAL COM A PANDEMIA DO COVID-19
O cenário resultante da Pandemia do COVID-19 para avaliar a eficácia do sistema existente em atender às necessidades da população. Essa análise será realizada examinando o Waiver de 2022 da Organização Mundial do Comércio em relação às vacinas e a Lei nº 14.200 do Brasil, uma vez que ambas abordam as demandas geradas pela pandemia do COVID-19 e as deficiências dos sistemas legais vigentes.
Considerando o sistema de proteção à propriedade intelectual, delineado pela função social da propriedade, existe um sistema nacional e global de patentes que confere aos seus titulares diversos direitos de exploração sobre a propriedade intelectual. A proteção concedida pelo estado a essas invenções, marcas e patentes concede aos criadores – e detentores dos direitos de propriedade em geral – um amplo controle sobre sua propriedade, mas o sistema de proteção à propriedade intelectual, especialmente no Brasil, foi adaptado para atender às necessidades sociais da população.
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL NA PROPRIEDADE INTELECTUAL.
Ao abordar o princípio da função social da propriedade, seria possível deduzir um desencontro entre a existência de patentes e o acesso à saúde pública pela população. Contudo, esse desencontro é apenas aparente, já que é a própria existência da proteção à propriedade intelectual que fomenta a pesquisa e desenvolvimento (P&D), gerando, por fim, a inovação necessária para garantir a saúde pública.
Ressalta-se, todavia, que a existência de patentes não deve impedir o acesso da população à inovação alcançada. Logo, em situações de disfuncionalidade entre o sistema ideal de proteção de patentes e a realidade, é possível buscar respaldo na Lei 9.279/96 que, em seus arts. 68 a 71, prevê as hipóteses de aplicação do sistema de licenças compulsórias.
As hipóteses previstas pela lei brasileira buscam agir prontamente para enfrentar doenças, epidemias e pandemias como emergências nacionais. Ao determinar a licença compulsória de uma patente pelo tempo necessário para lidar com a crise, atende-se ao interesse público e à função social da propriedade.
No Brasil, o uso das LCs foi limitado, mas em vários casos, a ameaça de sua aplicação foi suficiente para reduzir significativamente os preços de mercado. Nota-se ao analisar os casos em que o preço para manutenção dos tratamentos que utilizavam os medicamentos Nelfinavir, Kaletra e Efavirenz eram excessivamente custosos aos cofres públicos houve a tentativa do governo em emitir as respectivas licenças compulsórias.
No caso do medicamento Nelfinavir, a simples ameaça de uso do sistema – após tentativas de negociação de preços – levou o Laboratório Roche, detentor da patente original, a reduzir o valor do medicamento. Isso viabilizou a continuidade dos programas de saúde pública no Brasil.
O caso Kaletra apresentou um cenário semelhante, onde, após falhas nas negociações entre o governo brasileiro e o Laboratório Abbott, o procedimento para licenciamento compulsório do medicamento foi iniciado. Isso resultou na redução de 50% do valor original, mantendo a eficácia do Programa de Combate à AIDS no país.
Em 2007, o medicamento Efavirenz foi produzido mediante licença compulsória, após tentativas mal sucedidas de negociação para diminuir o preço do fármaco. O procedimento seguiu as condições da Lei 9.279/96, demonstrando a capacidade do sistema de licenças compulsórias em atender às necessidades públicas quando aplicado.
OS TRATADOS E ACORDOS INTERNACIONAIS PARA O USO DAS LICENÇAS COMPULSÓRIAS
Internacionalmente, a aplicação do sistema de licenças compulsórias segue parâmetros similares ao da legislação brasileira, conforme previsto no Acordo TRIPS. A Declaração de Doha fortalece o compromisso da comunidade internacional com o uso dessas licenças para proteger a saúde pública.
A inclusão do Artigo 31bis possibilitou a utilização das licenças compulsórias por países sem capacidade industrial para produzir os medicamentos licenciados, flexibilizando as restrições anteriores do Artigo 31(f) do Acordo TRIPS. No entanto, essa ampliação encontrou barreiras burocráticas excessivas, tornando sua utilização quase inviável.
A pandemia do COVID-19 gerou a criação do Waiver de 2022 da OMC e da Lei 14.200 no Brasil, visando atender às necessidades de acesso à saúde pública de forma mais imediata. No entanto, ambas as medidas, ao passarem por processos legislativos, se tornaram mais complexas do que inicialmente proposto, dificultando seu uso efetivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que o embate entre a proteção da propriedade intelectual por meio de patentes e o acesso à saúde pública revelou a importância das licenças compulsórias.
No entanto, obstáculos legais e burocráticos impedem sua efetiva aplicação, evidenciando a necessidade de simplificar e clarificar os procedimentos legais para o licenciamento compulsório. Assim, é possível equilibrar os interesses sociais, promovendo a inovação e garantindo o acesso a medicamentos essenciais a preços acessíveis para a população.
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Referências:
ACORDO TRIPS OU ACORDO ADPIC – Texto Integral – Disponível em: https://gedai.ufpr.br/acordo-trips-ou-acordo-adpic-texto-integral/ Acesso em 31 nov 2023
BRASIL. Lei 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm Acesso em: 31 nov 2023.
KESTRING, Luize Liebsch. Reflexos da Pandemia de Covid-19 nos Sistemas de Licenciamento Compulsório no Brasil e no Mundo: Uma análise das mudanças na Legislação Brasileira e no Acordo TRIPs. Disponível em: https://gedai.ufpr.br/wp-content/uploads/2023/12/Artigo-TCC-Luize-versao-final.pdf
WACHOWICZ, Marcos. “A propriedade Intelectual como Estratégia de combate à COVID-19” – REVISTA DE DIREITO INTELECTUAL – Nº02—2020: 179-198 – ISSN 2183-2587. Disponível em: https://gedai.ufpr.br/propriedade-intelectual-como-estrategia-de-combate-a-covid-19/ Acesso em: 20 out 2023.