
Análise das Discussões e Debates que Conduziram à Regulamentação da IA
Catherine Juglair Nogari Valente
INTRODUÇÃO
A partir de uma perspectiva histórica e comparativa, este artigo explora os desafios enfrentados, bem como as abordagens distintas que pavimentaram o caminho que levou ao modelo de regulamentação sobre sistemas de inteligência artificial que tem se observado atualmente, com foco no AI Act, do Parlamento Europeu (primeiro regulamento de IA do mundo), e no Projeto de Lei nº 2.338/2023, ainda em trâmite no Senado Federal, que se pretende o Marco Legal da Inteligência Artificial no Brasil, quando devidamente aprovado.
Inteligência Artificial (IA) impacta os direitos de propriedade intelectual de diversas formas, especialmente na interação com os direitos autorais. A integração entre sistemas de IA e a geração de obras criativas traz consigo um conjunto complexo de desafios, o que requer uma análise multifacetada. Além das possíveis infrações no uso de dados para treinar esses sistemas, depara-se também com a problemática de classificar e regulamentar proteções sobre eventuais obras criativas geradas sistemas de IA.
Recentemente, o Parlamento Europeu aprovou o primeiro regulamento de IA do mundo, o IA Act, com o objetivo de garantir segurança, respeito aos direitos fundamentais, sem deixar de promover a inovação. No Brasil, discute-se do Projeto de Lei nº 2.338/2023, em trâmite no Senado Federal. De forma semelhante ao AI Act, o PL 2338/2023 visa regulamentar os usos e desenvolvimento de sistemas de IA no Brasil, assegurando a transparência, responsabilidade e dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, e a partir de uma perspectiva história e comparativa, esse artigo busca explorar os desafios que levaram à regulamentação da IA na Europa e no Brasil, destacando as diferentes abordagens adotadas. O objetivo é compreender qual modelo regulatório foi implementado e como ele reflete a complexidade da interação entre direitos autorais e IA.
MODELOS DE REGULAMENTAÇÃO DISCUTIDOS
As discussões acerca dos modelos de regulamentação de sistemas de IA ebuliram desde 2021, quando a Comissão Europeia propôs um projeto de lei. Até então, diferentes sistemas normativos internacionais abordavam a questão de maneiras variadas (Jerez, 2021). Nesse contexto, discutiu-se largamente a aplicação de alguns modelos de proteção e regulamentação, dentre os quais, se destacam nesta pesquisa: (i) modelo centrado no autor (pessoa física); (ii) modelo centrado no titular (pessoa física ou jurídica); (iv) modelo sui generis; e (v) domínio público.
No modelo centrado no autor (antropocêntrico), a ênfase está na figura do autor humano como centro da criação intelectual, a quem seria atribuída a autoria e titularidade sobre as obras produzidas com o uso de sistema de IA, desde que portadoras de originalidade e criatividade (Schirru, 2020). Notoriamente, este modelo sempre esteve mais alinhado com o sistema seminal de proteção de direitos autorais. Contudo, o modelo enfrenta desafios relacionados à autonomia e imprevisibilidade dos sistemas de IA. Como Lana (2021) sugere, quando não é possível distinguir claramente a contribuição humana, as obras podem ser vistas como uma extensão da criatividade humana. Ademais, esse modelo se desdobrava em outras possibilidades: essa pessoa física criadora, por trás da obra gerada, seria o programador (que criou e treinou o algoritmo), o usuário final (que deu instruções específicas através de comandos e prompts), ou esses autores de obras originais, que forneceram parâmetros ou dados de entrada para treinamento dos modelos de sistemas de IA? (Miernicki; Ng, 2021). O modelo ainda esbarra na complexidade de delimitar o grau de contribuição de cada envolvido, como apontado por Schirru (2020).
Por sua vez, a proposta do modelo centrado no titular tem ênfase, por evidente, na figura do titular dos direitos autorais, independentemente do autor da obra (Schirru, 2020). Assim, a proteção a bens criativos gerados por sistemas de IA pertenceria a pessoa (física ou jurídica) que detenha a titularidade e, portanto, os direitos (de uso, exploração, distribuição etc.) sobre determinada obra ou bem imaterial. O modelo se apresentou com maior flexibilidade, permitindo que a titularidade pudesse ser transferida ou compartilhada (Schirru, 2020), observando, inclusive, o teor da Lei de Software brasileira neste particular. No entanto, como observado pelo autor, o modelo tem o potencial de acarretar a desumanização e na concentração de poder em mãos de grandes corporações, que, em regra, dominam a criação e distribuição de sistemas de IA.
O modelo sui generis apresentou-se como uma abordagem específica e adaptável para regular a proteção de produtos gerados por sistemas de IA, que não se encaixam de forma adequada às categorias de proteção então existentes (Schirru, 2020). Com um sistema modelado exclusivamente para tal finalidade, poderia se definir claramente a titularidade, acomodando aspectos da criação humana no desenvolvimento das IAs, o nível de autonomia do sistema, as políticas de uso de dados, em uma abordagem ampla e flexível (Schirru, 2020).
Lana (2021) destaca as figuras dos direitos conexos, que podem ser incluídos como parâmetro nessa modalidade. De acordo com o autor, os direitos conexos se prestam a respaldar a tutela do investimento das contribuições empresariais e, por outro lado, não exigem os mesmos requisitos aplicáveis ao direito autoral propriamente dito (Lana, 2021).
Por fim, a modalidade do domínio público sugere que as obras geradas por sistemas de IA não sejam protegidas por direitos autorais. Schirru (2020) destaca que esse é um conceito que ganha força considerando a constante evolução dos sistemas de IA e as obras geradas cada vez em maiores volumes. O autor analisa, ainda, que o domínio público pode impactar positivamente o acesso à informação, ao conhecimento e à cultura (Schirru, 2020).
ABORDAGENS REGULATÓRIAS ADOTADAS
Depois de muito debate, chegou-se ao que se conhece atualmente como modelo de regulamentação de sistemas de IA. Os resultados desta análise demonstram que, do ponto de vista da responsabilidade e obrigações dos desenvolvedores e implementadores de sistemas de AI, tanto o AI Act quanto o PL 2338/2023, adoram um modelo de regulamentação predominantemente centrado no titular. Sob esse aspecto, o AI Act estabelece uma estrutura rigorosa, baseada em regras diferentes e graduais, conforme os níveis de risco dos sistemas de IA considerados, impondo requisitos de supervisão humana, transparência e mitigação de riscos, com uma ênfase clara na proteção indivíduos impactados pela tecnologia.
Por sua vez, o PL 2338/2023 segue uma abordagem semelhante, reforçando a proteção dos direitos fundamentais e à dignidade humana, bem como estabelecendo regras de transparência ao longo do desenvolvimento de sistemas de IA.
Vale destacar que, o AI Act da União Europeia, ao adotar um sistema baseado em gradação de risco, pode se encaminhar para um modelo sui generis, com maior facilidade de se adaptar a novas evoluções tecnológicas que exijam novas soluções jurídicas.
Por fim, convém esclarecer que a discussão acerca de eventual autoria sobre o resultado de saída desses sistemas de IA (output) foi minimizada. A regulamentação europeia destaca a importância de manter a IA centrada no ser humano (antropocêntrica), e é acompanhada de perto por outras jurisdições, apesar de decisões pontuais em sentido contrário. Nesse aspecto, a discussão, atualmente, está mais centrada no conceito de criatividade, para compreender se os resultados alcançados com o uso desses sistemas podem ser considerados revestidos de caráter criativo suficiente para considera-los protegidos, bem como se os métodos e comandos utilizados pelo usuário final são complexos e específicos (Schirru, 2024).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A regulamentação da IA ainda está em evolução. O AI Act da União Europeia e o PL 2338/2023 no Brasil representam importantes marcos nesse cenário, no entanto, com a contínua e rápida evolução tecnológica desses sistemas, as discussões sobre autoria, originalidade e criatividade permanecem em pauta, exigindo abordagens interpretativas e adaptativas. Isso reflete o desafio de construir um arcabouço jurídico flexível o bastante para acompanhar as constantes mudanças e evoluções tecnológicas, mas que, por outro lado, também forneça a necessária segurança jurídica esperada do instituto.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Lei nº 9.609/1998, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e
dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 .fev. 1998a. Disponível em: <http:/Avww .planalto.gov.br/ccivil 03/leis//9609.htm>. Acesso em: 07 de dez. de 2022.
BRASIL. Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 20 fev. 1998b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm. Acesso em: 31 jul. 2022.
CTIA – Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil. 2023. Disponível em <https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2629&data1=2023-08-01&data2=2024-08-04> Acesso em: 30 de jun. de 2024.
GOMEZ JEREZ, Angy Meliza. Creative Capacity of Artificial Intelligence Systems and How They Are Considered by Copyright Law. Rev. Prop. Inmaterial, v. 31, p. 283, 2021.
LANA, Pedro de Perdigão. Inteligência artificial e autoria: questões de direito de autor e domínio público. Curitiba: IODA, 2021.
MIERNICKI, Martin; NG, Irene. Artificial intelligence and moral rights. AI & SOCIETY, v. 36, p. 319-329, 2021.
PARLAMENTO EUROPEU. Lei da UE sobre IA: primeira regulamentação de inteligência artificial. 2023-2024. Disponível em: <https://www.europarl.europa.eu/topics/pt/article/20230601STO93804/lei-da-ue-sobre-ia-primeira-regulamentacao-de-inteligencia-artificial> Acesso em: 30 de jun. de 2024.
SCHIRRU, Luca. Direito autoral e inteligência artificial: autoria e titularidade nos produtos da IA. Rio de Janeiro, 2020. Tese (Doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento) – Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
SENADO FEDERAL, Projeto de Lei nº 2338, de 2023. Dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial. 2023. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233> Acesso em 30 de jun. 2024.