
Descompasso entre a Academia e a Legislação: A Regulamentação da Inteligência Artificial e seus Impactos nos Direitos Autorais
1. Evolução Social e o Papel da Inteligência Artificial
O texto contextualiza a Inteligência Artificial (IA) na evolução das sociedades, desde a Sociedade 1.0 até a atual Sociedade 5.0, marcada pela transformação digital e o compartilhamento de conhecimento. A IA surge como uma ferramenta versátil, capaz de auxiliar nas tarefas cotidianas e de gerar obras artísticas, levantando debates sobre sua regulação, especialmente no campo dos direitos autorais. Marcos Wachowicz destaca a necessidade de regulamentação da IA generativa, que pode tanto promover a criação quanto facilitar práticas de plágio.
A nossa sociedade, em constante evolução, já foi centralizada na necessidade de caça para sobrevivência, período denominado de Sociedade 1.0, até o momento em que o ser humano aprendeu a plantar e colher, passando para a Sociedade 2.0. Com a revolução industrial, ao final do século XVIII e início do século XIX, passou-se a viver na Sociedade 3.0, até o momento em que inicia-se a Sociedade da Informação ou Sociedade 4.0, na qual o foco está na obtenção e uso de dados e informação. Atualmente, entende-se que, com a atenção voltada ao compartilhamento do conhecimento e à transformação digital, vivemos numa Sociedade 5.0 (SANTOS; RADOS, 2020)
Nesse contexto, insere-se a Inteligência Artificial (IA), uma ferramenta que hodiernamente tem sido alvo de grande discussão, mas também de um uso em diversas áreas e para diversas funções. A IA tem auxiliado as pessoas a responder simples perguntas como, por exemplo, qual a melhor forma de utilizar a função “substituir” do word, a criar e revisar textos, mas também a gerar obras como desenhos ou músicas.
Marcos Wachowicz (2024) chama a atenção para a necessidade de discussão sobre regulação da Inteligência Artificial generativa, na medida em que pode ser utilizada como uma poderosa ferramenta para a criação de novas obras, pode ser, também, um meio para a prática de plágio.
2. Direitos Autorais e os Desafios da IA Generativa
Uma análise de estudos acadêmicos sobre IA e propriedade intelectual, com foco em direitos autorais, evidencia duas questões centrais: autoria e originalidade. A IA desafia os conceitos tradicionais de autoria, que se baseiam na figura humana, e de originalidade, devido à sua capacidade de gerar obras a partir de padrões preexistentes. Os estudos revelam um interesse crescente na interseção entre IA e direitos autorais, destacando a necessidade de adotar normas para equilibrar o incentivo à inovação e a proteção dos criadores.
A academia tem dado significativo impulso na discussão acerca da IA, seus impactos e normatização, no tocante à propriedade intelectual, de forma que, a fim de entender o status atual da situação, foi efetuada uma busca na base Scopus, limitando-se aos campos “título”, “resumo” e “palavras-chaves” e aos artigos publicados em periódicos entre os anos de 2019 e 2024, utilizando os seguintes strings: (“Artificial Intelligence” OR “AI” OR “Machine Learning” OR “Deep Learning” OR “Neural Networks”) AND (“Intellectual Property” OR “IP” OR “Patent Law” OR “Copyright” OR “Trade Secrets” OR “Trademark” OR “IPR” OR “Intellectual Property Rights”) AND (“Regulation” OR “Policy” OR “Legal Implications” OR “Innovation” OR “Infringement” OR “Ownership” OR “Authorship”).
Dessa pesquisa, resultaram 625 trabalhos, sobre os quais realizou-se uma análise de conteúdo, através do software IRaMuTeQ, dos resumos destes artigos, gerando uma nuvem de palavras e um mapa de similitude.
Da análise quantitativa, dentre as 133.776 palavras analisadas, o termo copyright, ao aparecer como um destaque na nuvem de palavras, ocupa a terceira posição dentre as palavras principais, com 637 ocorrências, evidenciando a importância conferida pelas pesquisas ao impacto do uso da IA nos direitos autorais, havendo ainda uma maior incidência desse termo nos textos quando comparado à “propriedade intelectual” em si.
O mapa de similitude acima reforça este enfoque na relação entre IA e direitos autorais, no ponto em que estes são ilustrados em um cluster próprio, o de cor lilás, apresentando um tamanho de destaque e uma forte ligação semântica com o termo AI. Este grupo de palavras, inclusive, está separado do cluster azul, que contém as palavras “propriedade”, “intelectual” e “proteção”.
Isso denota que, nos estudos, apesar de existir uma parte dos trabalhos que analisa a intersecção entre IA e a proteção da PI, há um conjunto de publicações que, de maneira ainda mais especializada, focam na relação da IA com uma única espécie do gênero PI, quais sejam os direitos autorais.
É possível notar, ainda no cluster lilás, a existência do termo generate com forte conexão lexical com o termo AI, que, por sua vez, está ligado ao termo copyright, ilustrando o foco do objetivo de boa parte dos trabalhos na IA generativa.
No âmbito desta discussão, existem dois pontos fundamentais a serem observados: a autoria e a originalidade de obras geradas por IA. A questão da autoria surge diante da dificuldade em atribuir a criação a um sujeito específico, uma vez que, em muitos casos, a produção ocorre de maneira autônoma ou semi-autônoma por sistemas de IA. Isso desafia os modelos tradicionais de autoria, que se baseiam na figura humana como titular dos direitos sobre a obra.
Já o conceito de originalidade é igualmente controverso, pois o critério exige que a obra apresente um grau de inovação e criatividade próprios, algo que pode ser questionado em criações feitas por IA, as quais, geralmente, partem de dados e padrões preexistentes.
Assim, tanto a autoria quanto a originalidade abrem um debate sobre a necessidade de adaptar as normas de direitos autorais para responder aos avanços tecnológicos, preservando o equilíbrio entre incentivo à criação e proteção dos titulares dos direitos.
Todavia, essa preocupação acadêmica não tem sido refletida nos normativos mais recentes sobre Inteligência Artificial. Este ano, a União Europeia despontou internacionalmente ao lançar o AI Act, o primeiro marco regulatório voltado à inteligência artificial. Com foco na valorização humana, no estímulo à inovação e na categorização dos sistemas de IA conforme os riscos potenciais, o regulamento europeu traz diretrizes inovadoras.
No entanto, por sua natureza pioneira, essa legislação está sujeita a diferentes interpretações jurídicas, o que pode gerar certa incerteza em sua aplicação. Quanto à propriedade intelectual, destaque-se, a mencionada legislação não traz uma regulamentação específica sobre a autoria ou originalidade de obras geradas através da utilização, ainda que parcial, da IA, limitando-se a trazer uma determinação genérica, em cinco dispositivos, de proteção da PI dentro da cadeia de distribuição da IA, quando da avaliação da IA ou do cumprimento de algum requisito de publicização exigido pela norma.
3. Regulamento da IA e das Lacunas Jurídicas
A Legislação sobre AI da União Europeia é um marco inicial na regulação da IA, mas ainda apresenta lacunas no tratamento de questões específicas como autoria e originalidade de obras geradas por IA.
Apesar de trazer diretrizes gerais para categorização de riscos e proteção de propriedade intelectual, não aborda diretamente os desafios impostos pela IA generativa aos direitos autorais. Essa falta de regulamentação específica evidencia a urgência de colaboração entre academia, legisladores e setor privado para alinhamento de inovação tecnológica e proteção autoral.
Em síntese, a Inteligência Artificial está redefinindo como vemos a propriedade intelectual, especialmente no que toca aos direitos autorais. A análise dos estudos revela que o impacto da IA nas criações protegidas por direito autoral é uma área de interesse crescente.
Apesar desse avanço nas discussões acadêmicas, o campo regulatório ainda precisa evoluir para acompanhar o ritmo da inovação. O AI Act, lançado recentemente pela União Europeia, foi um marco inicial, mas seu foco está em diretrizes gerais para IA, com pouca menção a normas específicas para obras geradas por essa tecnologia. Esse primeiro passo, embora importante, ainda deixa lacunas quando se trata do aprofundamento acerca do impacto em pressupostos como autoria e originalidade.
Essa ausência de regulamentação clara sobre a criação por IA mostra o desafio de alinhar a proteção à inovação com os direitos autorais em um cenário digital dinâmico. Para resolver isso, é essencial que academia, legisladores e setor privado colaborem em busca de um equilíbrio que estimule a criatividade ao mesmo tempo em que protege quem cria.
Referências:
SANTOS, Neri dos; RADOS, Gregório Jean Varvakis. Fundamentos teóricos de gestão do conhecimento. 1. ed. Florianópolis: Pandion, 2020.
UNIÃO EUROPEIA. Regulamento nº 2024/1689, de 13 de junho de 2024. Cria regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial e que altera os Regulamentos (CE) nº 300/2008, (UE) nº 167/2013, (UE) nº 168/2013, (UE) 2018/858, (UE) 2018/1139 e (UE) 2019/2144 e as Diretivas 2014/90/UE, (UE) 2016/797 e (UE) 2020/1828 (Regulamento da Inteligência Artificial). Regulamento (Ue) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho. Bruxelas, 12 jul. 2024.
WACHOWICZ, Marcos. Plágio, Direitos Autorais e Regulação da IA Generativa. Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI). Disponível em: https://gedai.ufpr.br/plagio-direitos-autorais-e-regulacao-da-ia-generativa/. Acesso em: 30 out. 2024.